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Necropolítica

Necropolítica é a subjugação da vida ao poder da morte por meio da ação ou omissão do Estado. O filósofo camaronês Achille Mbembe foi quem propôs o conceito de necropolítica.

Dezenas de covas abertas em cemitério durante a pandemia, em texto sobre necropolítica.
A necropolítica gera condições de risco para grupos sociais específicos, gerenciando quem pode viver e quem deve morrer.[1]
Crédito da Imagem: Shutterstock.com
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Necropolítica é o uso do poder político e social para determinar quem pode viver e quem deve morrer. O conceito foi proposto pelo filósofo camaronês Achille Mbembe. A necropolítica é o exercício do necropoder, isto é, a capacidade de estabelecer o paradigma com base no qual são criados métricas aceitáveis para tirar vidas e controlar os corpos das pessoas.

No Brasil, a gestão da pandemia de covid-19 e a violência policial nas favelas do Rio de Janeiro e da Bahia são vistas como exemplos de necropolítica. Além de matar, a necropolítica exacerba as desigualdades sociais e raciais, marginalizando grupos como a população negra e periférica, frequentemente alvo de violência policial e falta de acesso a serviços básicos.

Mbembe relaciona a necropolítica ao neoliberalismo, argumentando que as práticas de dominação e exclusão foram intensificadas no contexto neoliberal. A necropolítica é evidente em contextos de colonialismo e apartheid, onde o racismo de Estado justifica a eliminação de certas populações, criando “mundos de morte”, onde a vida é constantemente ameaçada.

Leia também: Racismo — formas de discriminação e preconceito, racismo estrutural e racismo institucional

Tópicos deste artigo

Resumo sobre necropolítica

  • Necropolítica é um conceito criado pelo filósofo camaronês Achille Mbembe.

  • Refere-se ao poder de definir quem pode permanecer vivo e quem deve morrer.

  • Surgiu de uma crítica feita por Mbembe ao conceito de biopoder de Foucault, considerado insuficiente para explicar as formas contemporâneas de subjugação da vida ao poder da morte.

  • Enquanto o biopoder se preocupa com a gestão da vida, a necropolítica se concentra na gestão da morte.

  • A necropolítica resulta numa política de mortes.

  • O Estado exerce o necropoder para criar “mundos de morte”, onde vastas populações são submetidas a condições de vida precárias.

  • A necropolítica exacerba desigualdades sociais e raciais, marginalizando grupos como a população negra e periférica, frequentemente alvo de violência policial e falta de acesso a serviços básicos.

  • A necropolítica e o estado de exceção permitem exercer violência extrema sem restrições, enquanto o racismo de Estado justifica a eliminação de certas populações com base em hierarquias raciais.

  • Políticas de fronteira rígidas e a criminalização dos migrantes em várias partes do mundo são exemplos de necropolítica.

  • O racismo é uma condição prévia para a necropolítica, legitimando a violência e a morte como ferramentas de controle.

Videoaula sobre necropolítica

O que é necropolítica?

Necropolítica é um conceito que se refere ao uso do poder político e social, especialmente por parte do Estado, de forma a determinar, por meio de ações ou omissões, quem pode permanecer vivo ou deve morrer. A necropolítica não trata apenas do direito de matar como também do de gerar e gerir as condições que interferem diretamente nas chances de certos indivíduos de alcançar a morte.

Mais precisamente, necropolítica é a capacidade de estabelecer os parâmetros em que a submissão da vida pela morte está legitimada. Esses parâmetros são de classe, de gênero, de nacionalidade ou de raça. Na prática, necropolítica resulta numa política de mortes. O Estado tem o biopoder, para gerir a vida, e o necropoder, para fazer a morte.

A necropolítica, enfim, é o exercício do poder de forma a subjugar a vida ao poder da morte, criando “mundos de morte”, onde vastas populações são submetidas a condições de vida que lhes conferem o status de “mortos-vivos”, nas palavras de Achille Mbembe, o pensador camaronês que apresentou o conceito de necropolítica.

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Exemplos de necropolítica

Os exemplos de necropolítica são aqueles que geram condições de risco para alguns grupos específicos ou setores da sociedade. O racismo de Estado torna a violência legítima e aceita por uma parte da população, que autoriza o Estado a controlar zonas de exclusão dentro de um território e produzir mortes nesses espaços.

Quando a ação ou omissão do Estado aprofunda contextos de desigualdade, por exemplo, deixando prover acesso a saneamento básico ou campanhas de vacinação, provocando a morte de milhões de pessoas, estamos falando sobre necropolítica. A seguir, explicamos mais sobre quatro exemplos de necropolítica no Brasil e no mundo:

Violência policial no Brasil

Carro blindado e policial armado em favela, em texto sobre necropolítica.
Do ângulo da necropolítica, a política de segurança no Brasil é criticada como uma política de morte.[2]

A violência policial contra populações negras e pobres no Brasil é um exemplo claro de necropolítica, assim como a atuação impune de milícias e grupos de extermínio. Casos emblemáticos como o assassinato da vereadora Marielle Franco, o fuzilamento de Evaldo Rosa dos Santos, a morte da menina Ágatha Félix e o massacre do Jacarezinho ilustram como o Estado exerce um poder de morte sobre essas populações.

A polícia, muitas vezes, atua com extrema violência nas favelas e periferias, onde a maioria dos moradores é negra e pobre, perpetuando uma política de morte que decide as chances de quem deve viver ou morrer. O alto investimento público em segurança pública, especialmente em tecnologias que provocam mortes, é um desdobramento da necropolítica.

Crise migratória e políticas de fronteira

As políticas de fronteira rígidas e a criminalização dos migrantes em várias partes do mundo são exemplos de necropolítica. Isso acontece no caso de imigrantes venezuelanos, no Brasil, ou imigrantes de todas as partes do mundo, nos Estados Unidos e na Europa.

Essas políticas de tolerância zero ou negligenciadas expõem migrantes e refugiados a condições desumanas, muitas vezes resultando em mortes durante travessias perigosas ou em campos de refugiados ou detenção. A gestão dessas populações por um estado de exceção, em que os Direitos Humanos são frequentemente suspensos, exemplifica a necropolítica em ação.

Pandemia de covid-19

A gestão da pandemia de covid-19 em alguns países também pode ser vista sob a ótica da necropolítica. A falta de acesso equitativo a cuidados de saúde, vacinas e medidas de proteção para populações vulneráveis, como idosos, pobres e minorias raciais, revela como o poder de decidir quem vive e quem morre é exercido. Em muitos casos, a negligência deliberada ou a má gestão da crise sanitária resultaram em altas taxas de mortalidade entre essas populações.

Conflitos entre Israel e Palestina

A ocupação israelense dos territórios palestinos é frequentemente citada como um exemplo de necropolítica. A fragmentação territorial, o crescimento dos assentamentos israelenses na Cisjordânia, os bloqueios e as operações militares em Gaza, que resultam em deslocamentos constantes e mortes de civis palestinos, são formas de exercer o poder de morte sobre uma população específica.

Crianças pedindo comida em Gaza, em texto sobre necropolítica.
A crise humanitária em Gaza é citada como exemplo de necropolítica.[3]

Além disso, Israel conta com o uso de tecnologia avançada, drones de monitoramento e sistemas de defesa e ataque sofisticados. A militarização do espaço e a constante ameaça de violência criam um ambiente onde a vida dos palestinos é constantemente precarizada.

Veja também: Marginalização — processo que empurra indivíduos e grupos para a periferia da sociedade

Qual é a origem da necropolítica?

A origem da necropolítica é a crítica feita por Achille Mbembe, em seu ensaio Necropolítica, publicado em 2003, no qual ele expande o conceito de biopolítica, apresentado por Michel Foucault décadas antes.

Mbembe argumenta que a biopolítica não é suficiente para explicar todas as formas de dominação e violência, especialmente aquelas que envolvem a produção sistemática da morte. Para Mbembe, a origem da necropolítica está intimamente ligada aos conceitos de estado de exceção e racismo de Estado.

O estado de exceção, em que as normas legais são suspensas, permite ao Estado exercer violência extrema sem restrições. O racismo de Estado, por sua vez, justifica a eliminação de certas populações e grupos específicos com base em alegadas hierarquias raciais, legitimando a violência e a morte como ferramentas de controle. Entre o poder de fazer viver e deixar morrer, o racismo de Estado determinaria as condições de aceitabilidade para quem vive e morre.

Mbembe destaca que a necropolítica é particularmente evidente em contextos de colonialismo e apartheid. Durante o colonialismo, as populações colonizadas eram frequentemente tratadas como sub-humanas, sujeitas à violência extrema e ao extermínio.

O apartheid na África do Sul é outro exemplo em que a necropolítica se manifestou claramente, com o Estado segregando e oprimindo a população negra, muitas vezes resultando em mortes sistemáticas.

O racismo de Estado e o estado de exceção, em contextos neocoloniais, legitimam o uso da violência extrema para manter o controle sobre populações inteiras, criando “mundos de morte”, onde a vida é constantemente ameaçada.

Quem é Achille Mbembe?

Achille Mbembe (1957) é um filósofo, teórico político e historiador camaronês. Ele é professor de história e ciência política da Universidade de Witwatersrand, em Joanesburgo, e na Duke University, nos EUA. É um dos mais originais pensadores contemporâneos nas questões relacionadas à descolonização, à escravidão e ao racismo. É autor, entre tantos escritos, de Crítica da razão negra e Necropolítica, ambos publicados no Brasil.

Achille Mbembe, autor do conceito de necropolítica.
Achille Mbembe foi quem propôs o conceito de necropolítica.[4]

O termo necropolítica foi adotado, em 2003, por Mbembe como o título de um ensaio. Mbembe propõe a noção de necropolítica e necropoder para explicar como, no mundo contemporâneo, armas e violência são usadas para criar “mundos de morte”, onde vastas populações são submetidas a condições de vida que as transformam em “mortos-vivos”.

Portanto, a necropolítica, como articulada por Mbembe, não se opõe à biopolítica de Foucault, mas aponta para os seus limites e continuações. A crítica de Mbembe destaca a falta de reflexão de Foucault sobre o impacto do colonialismo e as especificidades do racismo no exercício do poder soberano em países que foram colonizados por europeus.

Necropolítica e racismo

Na necropolítica, as condições que legitimam a submissão da vida pela morte são baseadas, sobretudo, em critérios como classe, gênero e raça. A estreita relação entre necropolítica e racismo é um tema central de discussão. O racismo é a condição prévia para que a necropolítica seja aceita.

O racismo é uma ideologia que opera sobre a vida biológica das pessoas, dividindo-as em grupos específicos e que recebem tratamentos desiguais. O racismo é uma ferramenta crucial no exercício da necropolítica, regulando a distribuição da morte e tornando aceitável o ato de matar. O racismo, portanto, é uma condição para a aceitabilidade do “fazer morrer”, e a necropolítica se manifesta por meio da violência racializada. Os critérios de racialização da população têm um papel central na regulação da morte.

O racismo de Estado fornece a justificativa ideológica para a necropolítica, permitindo que o Estado exerça o poder de matar de forma sistemática e institucionalizada. A violência racial é normalizada e legitimada como uma forma de proteger a população dominante e manter a ordem social. No Brasil, isso se manifesta na violência policial, no encarceramento em massa e na marginalização de populações negras e indígenas.

Necropolítica no Brasil

A necropolítica no Brasil se manifesta, por exemplo, quando alguém repete o bordão: “bandido bom é bandido morto”. Esse tipo de pensamento é popularmente aceito porque reflete a própria estrutura social do Brasil, que carrega marcas do período escravocrata, e está definida por desigualdades de raça, classe e de gênero. Esses fatores são determinantes para aumentar ou diminuir as chances de morrer no Brasil.

A necropolítica está na letalidade da força policial no Brasil e no encarceramento em massa da população, práticas que alcançam mais os jovens negros e periféricos. A necropolítica está na negligência do Estado com as comunidades indígenas e quilombolas, que estão perdendo território, e, com ele, seus modos de vida e produção de conhecimento, para grileiros e para o agronegócio.

A gestão da pandemia de covid-19 pelo governo brasileiro é vista como um exemplo de necropolítica devido a uma série de ações e omissões que contribuíram com a morte de milhares de brasileiros. A negação da gravidade do vírus, a demora na compra de vacinas, a falta de resposta adequada à crise e a promoção de desinformação sobre medidas preventivas são todos exemplos de como o poder foi exercido de maneira a expor certas populações a um risco maior de morte.

Saiba mais: Violência no Brasil — dados, causas e consequências

Consequências da necropolítica

Além de provocar mortes de várias maneiras diferentes, a necropolítica exacerba as desigualdades sociais e raciais, pois determinados grupos são sistematicamente marginalizados e expostos a condições de vida precárias. No Brasil, por exemplo, a população negra e periférica é frequentemente alvo de políticas de morte, como a violência policial e a falta de acesso a serviços básicos.

As consequências da necropolítica sugerem outro modelo de compreensão das formas contemporâneas de violência e controle. Do ângulo da necropolítica, no Brasil, a chamada política de segurança, na verdade, é uma política de morte. É o que podemos constatar, por exemplo, nas favelas do Rio de Janeiro e da Bahia, nas periferias das grandes cidades brasileiras. Se não há nenhum tipo de serviço de inteligência, de combate à criminalidade, o que sobra é violência e a perseguição daquele considerado perigoso.

O conceito de necropolítica reúne todos esses elementos e faz a crítica da chamada política de segurança, denunciada como mais uma prática que, desde o início da ocupação colonial, se manifesta por meio da desumanização e desvalorização da vida de certas populações.

Segundo a necropolítica, a política de segurança é uma ferramenta importante na gestão da morte e fundamental para a governança das sociedades, nas quais o poder político decide quem é “descartável” e quem não é.

Outra consequência da necropolítica é o crescimento da atuação de milícias e outros grupos paramilitares, que operam tanto dentro quanto fora do aparato estatal, exercendo controle sobre territórios e populações por meio da violência e do medo. Eles são uma extensão do necropoder, atuando como agentes de morte que reforçam a lógica de exclusão e eliminação de determinados grupos sociais.

Necropolítica e neoliberalismo

O pensador Achille Mbembe também relaciona a necropolítica ao neoliberalismo, argumentando que as mudanças na forma de reprodução social do capitalismo intensificaram as práticas de dominação e exclusão. Apresentamos, a seguir, uma declaração do autor sobre a relação entre necropolítica e neoliberalismo, dada no contexto da pandemia anos atrás.

Em entrevista dada ao jornalista brasileiro Diogo Bercito|1| em março de 2020, ainda no início da pandemia de covid 19, Achille Mbembe apontou a necropolítica como chave para entender por que o vírus não afetaria todas as pessoas de uma maneira geral.

“O sistema capitalista é baseado na distribuição desigual da oportunidade de viver e de morrer”, disse Achille Mbembe, “Essa lógica do sacrifício sempre esteve no coração do neoliberalismo, que deveríamos chamar de necroliberalismo. Esse sistema sempre operou com a ideia de que alguém vale mais do que os outros. Quem não tem valor pode ser descartado.”

No contexto neoliberal, a governamentalidade se torna uma forma de gestão que combina elementos de biopolítica e necropolítica, utilizando tecnologias avançadas e políticas de segurança para controlar e eliminar populações consideradas indesejáveis.

Nota

|1|BERCITO, Diogo. Pandemia democratizou poder de matar, diz autor da teoria da ‘necropolítica’. Folha de S. Paulo, 30 mar. 2020. Mundo. Coronavírus. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2020/03/pandemia-democratizou-poder-....

Créditos das imagens

[1] BW Press/ Shutterstock

[2] Photocarioca/ Shutterstock

[3] Anas-Mohammed_Shutterstock

[4] Wikimedia Commons

Fontes

ARANTES, P.F.; SÍGOLO, V. N.; GHISLENI, P.C. Necropolítica e memória na pandemia de Covid-19: análise das iniciativas de justiça e reparação no Brasil. Revista ARA, n º 15. Primavera +Verão, 2023, Grupo Museu/Patrimônio – FAU-USP.

BERCITO, Diogo. Pandemia democratizou poder de matar, diz autor da teoria da ‘necropolítica’. Folha de S. Paulo, 30 mar. 2020. Mundo. Coronavírus. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2020/03/pandemia-democratizou-poder-....

IANNI, O. Raças e classes sociais no Brasil. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1972.

MBEMBE, A. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte. Trad. Renata Santini. São Paulo, 2018.

MBEMBE, A. Crítica da razão negra. Trad. Sebastião Nascimento. São Paulo: 2018.

SILVA, F. S. V. F. Da; GARCIA, E. L. Produções de vulnerabilidades no cenário da pandemia e necropolítica: interconexões e reflexões. Revista Psicologia Saúde e Debate, maio 2023. 9(1). pp. 277-291.

Escritor do artigo
Escrito por: Rafael Pereira da Silva Mendes Licenciado e bacharel em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Atuo como professor de Sociologia, Filosofia e História e redator de textos.

Gostaria de fazer a referência deste texto em um trabalho escolar ou acadêmico? Veja:

MENDES, Rafael Pereira da Silva. "Necropolítica"; Brasil Escola. Disponível em: https://brasilescola.uol.com.br/sociologia/necropolitica.htm. Acesso em 09 de outubro de 2024.

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