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Chamado de “imperador da língua portuguesa” por Fernando Pessoa, Padre Antônio Vieira foi autor de correspondências, textos proféticos e sermões. Esse último gênero textual lhe garantiu grande destaque pela riqueza no trabalho com a linguagem e pela abordagem de temas políticos e sociais em meio a imagens religiosas.
Polêmico, Vieira foi jesuíta, contrário aos excessos da Inquisição e fez muito sucesso como pregador. Suas habilidades linguísticas impecáveis, sobretudo em retórica e oratória, tornaram-no o pregador oficial da corte portuguesa por um período. E suas ideias pouco convencionais levaram-no até mesmo à prisão por heresia.
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Tópicos deste artigo
Biografia
Antônio Vieira nasceu em Lisboa, em 6 de fevereiro de 1608. Seu pai, Cristóvão Vieira, era funcionário da coroa portuguesa e foi direcionado a Salvador para atuar como escrivão em 1615. Assim, Vieira mudou-se com a família para o Brasil, então colônia portuguesa, onde iniciou os estudos no colégio dos jesuítas.
Em 1623, ingressou na Companhia de Jesus, onde se destacou pelo bom uso da retórica e da oratória, passando também a ensiná-las aos noviços de Olinda. Ordenado padre em 1634, começou a carreira de pregador pelas aldeias baianas.
Ao tomar conhecimento da Restauração Portuguesa (1640), movimento que deu fim à União Ibérica e garantiu a retomada da autonomia política de Portugal, Vieira voltou para Lisboa para reforçar seu apoio à coroa. Tornou-se, então, pregador da Capela Real, homem de confiança do rei D. João IV e recebeu várias missões diplomáticas. Envolveu-se também em algumas intrigas na corte, como a defesa dos cristãos-novos perante a Inquisição, que os tinha expulsado de Portugal.
Retornou ao Brasil em 1652 e passou a se dedicar à pregação e à catequese no Maranhão. Versado em sete idiomas indígenas, aproximou-se dessas comunidades, defendendo o fim da escravização dos povos nativos e também dos africanos. Não tardou a sofrer retaliações: os senhores de engenho e donos de escravos muito se incomodaram com os ideais de Vieira e expulsaram-no do Maranhão em 1661.
Vieira voltou, então, para Lisboa, onde seu horizonte de liberdade religiosa também incomodou a Inquisição. Acusado de aproximação com judeus, o sacerdote foi tido como herege e preso pelos inquisidores em 1666. Anistiado no ano seguinte, partiu para Roma, onde se destacou como pregador e denunciou abusos da Inquisição portuguesa.
Em 1681, retornou a Salvador e passou a revisar e organizar os mais de duzentos sermões que compõem sua obra, exercendo então cargos altos na burocracia jesuíta. Morreu no Colégio da Bahia, aos 89 anos, em 18 de julho de 1697.
Características literárias
→ A forma do sermão
Desde os anos do sacerdócio, Vieira destacou-se como grande orador. A grande maioria dos seus textos foi escrita, portanto, no formato de sermões, ou seja, textos em prosa de orientação moral e religiosa que têm como objetivo argumentar e persuadir o leitor.
→ Engajamento religioso, social e político
Os sermões de Vieira não tinham apenas orientação religiosa, mas refletiam sua participação nos debates sociais e políticos da época. Temas como a Restauração Portuguesa, as invasões holandesas em Pernambuco, a escravização de indígenas e negros e a defesa dos cristãos-novos perante a Inquisição são bastante presentes em sua obra. Há também um horizonte utópico em seus textos, nascido dos ideais contrarreformistas do triunfo da Igreja Católica na Terra.
→ Elevada expressão verbal
A prosa de Vieira é uma consolidação dos padrões literários que Camões tinha proposto em língua portuguesa, compondo seus textos com riqueza de vocabulário, estruturas sintáticas que oscilam entre mais simples e mais complexas, além da capacidade de lapidar o discurso de maneira precisa e engenhosa.
→ Expoente do barroco
Vieira pode ser considerado um expoente da prosa do movimento barroco em língua portuguesa. Seus sermões são escritos de maneira imagética, lançando mão de metáforas, sinonímias, hipérboles, apóstrofes e jogos de linguagem. A prosa de Vieira reverbera principalmente características do conceptismo, ou seja, do esmero com a linguagem em prol de exemplificar uma argumentação lógica, fazendo uso de silogismos e da dialética.
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Obras
A obra de Padre Antônio Vieira é tradicionalmente dividida em textos proféticos, sermões e correspondências. Os chamados textos proféticos aparecem em menor quantidade – deles destacam-se principalmente as obras Esperanças de Portugal e História do Futuro. Nesses textos, Vieira imagina um destino espiritual ao qual o reino português estaria predestinado: a construção do Quinto Império de Cristo na Terra, uma espécie de monarquia cristã universal que regeria um longo período de paz entre todos os povos, antes da chegada do Juízo Final. Esse lusocentrismo reverbera no povo português uma nova esperança, depois dos quarenta anos de unificação de Portugal e Espanha.
As cartas representam uma parcela enorme da obra de Vieira: são mais de setecentas correspondências trocadas com monarcas, fidalgos, membros do Tribunal do Santo Ofício e demais membros da Igreja, especialmente jesuítas. Esse compilado epistolar dá amostras não somente da grande articulação literária do sacerdote, mas também de questões históricas e políticas importantes de sua época.
→ Sermões
Os mais de duzentos sermões são os responsáveis por tornar famosa a obra do Padre Antônio Vieira. Desde o noviciado, o autor destacava-se pelas habilidades em retórica e oratória e foi um exímio pregador no Brasil e em Portugal. Dizia que “pregar é como semear” e foi pela forma do sermão que o sacerdote encontrou um modo de disseminar seus pensamentos políticos e religiosos em linguagem trabalhada com afinco, bem-acabada e ricamente argumentativa, reverberando nos leitores e ouvintes o grande poder da Igreja Católica e do reino português.
São exemplos de evangelização, da grande utopia de um catolicismo universal, o que envolvia, para Vieira, a necessidade de grandes reformas administrativas na colônia brasileira, misturando assuntos de ordem espiritual aos de ordem material, como a economia açucareira e o modo de produção escravocrata. Ousado, o padre autor lança mão de críticas mordazes aos vícios dos colonos e à corrupção da administração colonial.
A estrutura dos sermões está organizada em três partes:
-
introito ou exórdio: é a introdução ao tópico, ao assunto do qual tratará o sermão;
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desenvolvimento ou argumento: nessa parte, desenvolvem-se as principais ideias do texto. É nesse momento em que o autor apresenta os argumentos para convencer o público;
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peroração: é a conclusão do sermão. Geralmente expressa a finalização da argumentação com a opinião do autor sobre o assunto.
Os mais famosos sermões de Padre Antônio Vieira são: Sermão da Sexagésima, Sermão Décimo Quarto do Rosário, Sermão pelo Bom Sucesso das Armas de Portugal contra as de Holanda, Sermão da Primeira Dominga da Quaresma e Sermão de Santo Antônio aos Peixes.
Leia um trecho do Sermão de Santo Antônio aos Peixes:
“Vós, diz Cristo, Senhor nosso, falando com os pregadores, sois o sal da terra: e chama-lhes sal da terra, porque quer que façam na terra o que faz o sal. O efeito do sal é impedir a corrupção; mas quando a terra se vê tão corrupta como está a nossa, havendo tantos nela que têm ofício de sal, qual será, ou qual pode ser a causa desta corrupção? Ou é porque o sal não salga, ou porque a terra se não deixa salgar. Ou é porque o sal não salga, e os pregadores não pregam a verdadeira doutrina; ou porque a terra se não deixa salgar e os ouvintes, sendo verdadeira a doutrina que lhes dão, a não querem receber. Ou é porque o sal não salga, e os pregadores dizem uma cousa e fazem outra; ou porque a terra se não deixa salgar, e os ouvintes querem antes imitar o que eles fazem, que fazer o que dizem. [...]
Pregava Santo Antônio em Itália na cidade de Arimino, contra os hereges, que nela eram muitos; e como erros de entendimento são dificultosos de arrancar, não só não fazia fruto o santo, mas chegou o povo a se levantar contra ele e faltou pouco para que lhe não tirassem a vida. Que faria neste caso o ânimo generoso do grande Antônio? Sacudiria o pó dos sapatos, como Cristo aconselha em outro lugar? Mas Antônio com os pés descalços não podia fazer esta protestação; e uns pés a que se não pegou nada da terra não tinham que sacudir. [...] Pois que fez? Mudou somente o púlpito e o auditório, mas não desistiu da doutrina. Deixa as praças, vai-se às praias; deixa a terra, vai-se ao mar, e começa a dizer a altas vozes: Já que me não querem ouvir os homens, ouçam-me os peixes. Oh maravilhas do Altíssimo! Oh poderes do que criou o mar e a terra! Começam a ferver as ondas, começam a concorrer os peixes, os grandes, os maiores, os pequenos, e postos todos por sua ordem com as cabeças de fora da água, Antônio pregava e eles ouviam. […]
Enfim, que havemos de pregar hoje aos peixes? Nunca pior auditório. Ao menos têm os peixes duas boas qualidades de ouvintes: ouvem e não falam. Uma só cousa pudera desconsolar o Pregador, que é serem gente os peixes que se não há de converter. Mas esta dor é tão ordinária, que já pelo costume quase se não sente […] Suposto isto, para que procedamos com clareza, dividirei, peixes, o vosso sermão em dois pontos: no primeiro louvar-vos-ei as vossas atitudes, no segundo repreender-vos-ei os vossos vícios. […]
Vieira começa o sermão introduzindo uma citação bíblica: “vós sois o sal da terra”, ou seja, são os fiéis, os ouvintes, que devem participar ativamente da vida comunitária e evitar que ela se torne palco de corrupções ou atrozes desvios de conduta. Passa, então, a mencionar um episódio em que santo Antônio fora pregar o Evangelho a uma plateia que não lhe deu atenção e, por isso, resolveu pregar aos peixes: já que “a terra não se deixa salgar”, dirige sua palavra para o mar.
Vieira escreveu esse sermão poucos dias antes de partir para Portugal, graças às perseguições que vinha sofrendo de senhores de escravos por sua constante crítica aos abusos por eles perpetrados. Assim, recupera a palavra de Santo Antônio dirigida a hereges, não crentes, e aplica o discurso do santo à sua audiência colonial. Faz o elogio à rêmora, peixe de pequeno porte que se permite ser transportado por peixes maiores, tartarugas ou mesmo barcos. A rêmora funcionaria, então, como leme e freio da nau: Santo Antônio e a palavra do Evangelho seriam esse pequenino peixe que salva os homens da soberba, da vingança e da cobiça, pecados que Vieira percebia vívidos na sociedade colonial portuguesa.
Citando Santo Antônio, Vieira aponta que o mal que acomete os colonos é o fato de que os homens, assim como os peixes, devoram-se uns aos outros, sempre os maiores comendo os menores. São os fracos que sofrem a maldade dos fortes. É a denúncia da injustiça constante que acometia aqueles desprovidos de poder, que escravizavam outros em prol de si mesmos. E esses mesmos peixes grandes da colônia seriam devorados pelos peixes ainda maiores da metrópole.
O discurso de Vieira é bastante persuasivo: por meio da lógica argumentativa, da alegoria e do estilo bem-acabado, lançando mão de metáforas e antíteses, conduz o ouvinte ao raciocínio – e ao convencimento.
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Frases
“Para falar ao vento, bastam palavras; para falar no coração, são necessárias obras”
“Os homens, com suas más e perversas cobiças, vêm a ser como os peixes, que se comem uns aos outros (…) e os grandes comem os pequenos”
“De um erro nascem muitos, e sobre fundamento tão errado nunca houve edifício certo”
“Tudo aquilo que se faz para os olhos dos homens, ainda que se faça, não se faz”.
“A razão por que não achamos o descanso é porque procuramos onde ele não está”
“Humildade essencialmente é o conhecimento da própria dependência, da própria imperfeição e da própria miséria”
“Nós somos o que fazemos. O que não se faz não existe. Portanto, só existimos nos dias em que fazemos. Nos dias em que não fazemos apenas duramos”
Crédito da imagem
[1] Mariangela Cruz / Shutterstock.com
Por Luiza Brandino
Professora de Literatura