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O Tribunal da Santa Inquisição, mais conhecido apenas como Inquisição, constitui um dos temas da história humana que mais geram discussões acaloradas. Essas discussões, por vezes, furtam-se a estabelecer critérios mínimos para uma compreensão correta do contexto em que surgiu essa instituição e, frequentemente, confundem a inquisição católica medieval com a inquisição católica moderna (atuante sobretudo em Portugal, Espanha e em suas respectivas colônias), bem como a inquisição de corte protestante, também em vigor na Idade Moderna. Para compreendermos estritamente como foi criada e de que forma atuava a inquisição na Idade Média, é necessário entender a crise espiritual e social provocada pelas heresias dos séculos XII e XIII, sobretudo o catarismo.
Desde os primórdios do cristianismo, as heresias, isto é, seitas religiosas que formulavam interpretações distorcidas da doutrina e da tradição cristã, fizeram-se presentes, principalmente com a mescla dos fundamentos cristãos com os de seitas esotéricas gnósticas, como o masdeísmo. Os antigos “pais da Igreja”, bispos e intelectuais, como Irineu de Lyon, Clemente de Alexandria e Agostinho de Hipona, sempre combateram as heresias no campo intelectual e episcopal, o que também incluía a esfera política da época. Todavia, na Baixa Idade Média, isto é, depois do século XI, as seitas heréticas começaram a tomar uma proporção nunca antes vista. Entre essas seitas, a mais numerosa era a dos cátaros.
Os cátaros, termo que vem do grego e significa “puros”, herdaram algumas concepções do gnosticismo e acreditavam que o mundo havia sido criado por um deus mau (um demiurgo) e que o corpo humano era uma prisão para a alma, posto seu caráter corruptível – opinião essa que feria o dogma da criação e da identificação de Deus com o sumo Bem. Essa posição catarista repercutia, além do plano teológico, no plano social. Com o catarismo, veio a contestação dos pilares da sociedade, como a propriedade privada e o matrimônio, já que milhares de pessoas passaram a seguir tal heresia. Essa posição revolucionária dos cátaros pôs em risco tanto a estrutura episcopal quanto a estrutura do Sacro Império Romano-Germânico.
No ano de 1148, realizou-se o chamado sínodo de Verona, orientado pelo papa Lúcio III e pelo Sacro Imperador Frederico Barbaroxa. Esse sínodo tinha como objetivo estabelecer resoluções para a situação do avanço do catarismo, bem como para as suas consequências, tais como as perseguições e violências coletivas: conflitos entre grupos civis, linchamentos etc. Nas décadas que se seguiram, os Concílios da Igreja passaram a incluir as resoluções do sínodo, dando ênfase ao combate ao catarismo e às demais heresias. Esse combate, entretanto, não seria mais apenas no campo de debate público e das considerações episcopais, mas no campo do domínio jurídico eclesiástico.
O papa Inocêncio III, cujo pontificado teve início em 1189, tomou as primeiras medidas nesse sentido, como a exclusão dos hereges das funções públicas e confisco de seus bens. Além disso, deu ordem aos cruzados para combater os cátaros, que, dada a sua numerosa organização, também possuíam um exército. As guerras entre cruzados e cátaros ocorreram entre 1208 e 1211, gerando inúmeros cenários de carnificina. Tornaram-se comuns também as perseguições sem critério àqueles que eram reconhecidos como heréticos. O agravamento da situação exigiu que a Igreja determinasse a criação de tribunal específico para esses assuntos. Esse tribunal seria independente dos tribunais civis, mas, em determinados casos, entregariam os investigados à autoridade civil.
Foi então que, em 1231, o papa Gregório IX instituiu o chamado Inquisitio haereticae pravitatis, que ficaria conhecido como Tribunal da Santa Inquisição. Esse tribunal orientava-se pelo código canônico da Igreja e, em seu regimento, também havia princípios do código jurídico do Sacro Império Romano-Germânico, à época comandado por Frederico II. Ao contrário do que se pensa, a inquisição não matou milhões de pessoas na Idade Média (e esse número também não foi atingido na Idade Moderna) e nem as torturas (método que foi introduzido em 1252) eram aplicadas em todos os casos e por todos os inquisidores. A pena capital (a morte), ao contrário do que se pensa também, não era cumprida pelos membros da Igreja. Quando havia a condenação de um herético à morte, ela era realizada pelo “braço secular”, isto é, pela autoridade civil, como bem assevera a historiadora Regine Pernoud em seu livro “Luz sobre a Idade Média”:
“[…] Nos casos graves, unicamente, o culpado é entregue ao braço secular, o que significa que incorre em penas civis, como prisão ou a morte; pois, de todo o modo, o tribunal eclesiástico não tem o direito de pronunciar ele próprio semelhantes penas. Aliás, segundo declaração de autores, de qualquer tendência que sejam, que estudaram a Inquisição pelos textos, esta apenas fez, segundo a expressão de Lea, escritor protestante, traduzido em francês por Salomon Reinach, 'poucas vítimas'. Em novecentas e trinta condenações produzidas pelo inquisidor Bernard Gui durante a sua carreira, quarenta e duas ao todo conduziram à pena de morte. Quanto à tortura, apenas se assinalam, em toda a história da Inquisição no Linguadoque, três casos certos em que ela foi aplicada; é dizer que o seu uso era nada menos que geral. Era preciso, por outro lado, para que ela fosse aplicada, que houvesse começo de prova; só podia servir para fazer completar confissões já feitas. Acrescentemos que, como todos os tribunais eclesiásticos, o da Inquisição ignora a prisão preventiva e deixa os acusados em liberdade até à apresentação de provas da sua culpabilidade. [1]
NOTAS
[1] PERNOUD, Régine. Luz Sobre a Idade Média. Trad. António Manuel de Almeida Gonçalves. Mem Martins: Publicações Europa – América, 1997. p. 90.
Por Me. Cláudio Fernandes