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Entende-se por literatura negra a produção literária cujo sujeito da escrita é o próprio negro. É a partir da subjetividade de negras e negros, de suas vivências e de seu ponto de vista que se tecem as narrativas e poemas assim classificados.
É importante ressaltar que a literatura negra surgiu como uma expressão direta da subjetividade negra em países culturalmente dominados pelo poder branco – principalmente os que receberam as diásporas africanas, imigrações forçadas pelo regime do tráfico negreiro. É o caso do Brasil, por exemplo. A chamada literatura brasileira oficial ou canônica, ou seja, aquela que corresponde aos livros “clássicos”, contemplados pelos currículos escolares, reflete esse paradigma da dominação cultural branca: é, em sua maioria esmagadora, escrita por brancos retratando personagens brancos.
A presença de personagens negras é sempre mediada por esse distanciamento racial e de modo geral reproduz estereótipos: é a mulata hipersexualizada, o malandro, o negro vitimizado etc. É o caso das personagens negras de Monteiro Lobato, por exemplo, retratadas como serviçais sem família (Tia Anastácia e Tio Bento), e aptos à malandragem como um fator natural (como o Saci-Pererê, jovem sem vínculos familiares que vive enganando as pessoas do sítio).
Assim, é por meio da literatura negra que as personagens e autores negros e negras retomam sua integridade e sua totalidade enquanto seres humanos, rompendo o círculo vicioso do racismo institucionalizado, entranhado na prática literária até então.
“A discriminação se faz presente no ato da produção cultural, inclusive na produção literária. Quando o escritor produz seu texto, manipula seu acervo de memória onde habitam seus preconceitos. É assim que se dá um círculo vicioso que alimenta os preconceitos já existentes. As rupturas desse círculo têm sido realizadas principalmente pelas suas próprias vítimas e por aqueles que não se negam a refletir profundamente acerca das relações raciais no Brasil”. |1|
Tópicos deste artigo
Origens: breve panorama histórico
O conceito de literatura negra consolidou-se em meados do século XX, com o surgimento e o fortalecimento dos movimentos negros. A pesquisadora Maria Nazareth Soares Fonseca pontua que a gênese das manifestações literárias negras em quantidade deu-se na década de 1920, com o chamado Renascimento Negro Norte-americano, cujas vertentes – Black Renaissance, New Negro e Harlem Renaissance – resgatavam os vínculos com o continente africano, desprezavam os valores da classe média branca americana e produziram escritos que constituíram importantes instrumentos de denúncia da segregação social, bem como direcionavam-se à luta por direitos civis do povo negro.
Segundo Fonseca, foi essa efervescente produção literária a responsável pela afirmação de uma consciência de ser negro, que depois espalhou-se para outros movimentos na Europa, Caribe, Antilhas e diversas outras regiões da África colonizada.
É importante ressaltar que há diversas tendências literárias dentro do conceito de literatura negra. As características mudam de acordo com o país e o contexto histórico em que o texto é produzido, de modo que a literatura produzida no início do século XX nos Estados Unidos foi diferente daquela produzida em Cuba (o chamado Negrismo Crioulo), que por sua vez diferiu das publicações do movimento da Negritude, nascido em Paris, na década de 1930, bem como a produção negro-brasileira teve suas próprias peculiaridades, pois a experiência de ser negro em cada um desses territórios é também diversa.
Embora o conceito de literatura negra tenha aparecido apenas no século XX, a produção literária feita por negros e abordando a questão negra existe no Brasil desde o século XIX, mesmo antes do fim do tráfico negreiro. É o caso dos poucos lembrados (e abolicionistas) Luiz Gama e Maria Firmina dos Reis, a primeira romancista negra da América Latina e seguramente a primeira autora mulher abolicionista da língua portuguesa.
É o caso também dos célebres Cruz e Sousa, ícone do movimento simbolista, do pré-moderno Lima Barreto e do maior escritor da literatura brasileira, Machado de Assis – este último, constantemente embranquecido pela mídia e pelas editoras, a ponto de muita gente desconhecer que era negro.
Os mais de três séculos de escravidão normalizaram, no Brasil, a exclusão cabal da população negra da participação cidadã e sua incorporação aos meios oficiais de cultura. Resistindo nas franjas desse sistema, a intelectualidade negra fundou, em 1833, o jornal O Homem de Cor, publicação de cunho abolicionista, uma entre várias que se manifestaram em número cada vez maior ao longo do século XIX e XX, reivindicando as pautas que os outros veículos de mídia não contemplavam.
A imprensa negra, aliás, é uma pedra fundamental da imprensa brasileira, de modo que a própria Associação Brasileira de Imprensa (ABI) foi fundada por um escritor negro, Gustavo de Lacerda.
Saiba mais: Três grandes abolicionistas negros brasileiros
Cadernos Negros
Importante marco para a consolidação da literatura negra no Brasil foi o surgimento dos Cadernos Negros, antologia de poesia e prosa, lançados pela primeira vez em 1978. Nascidos do Movimento Negro Unificado contra Discriminação Racial – que depois tornou-se simplesmente MNU (Movimento Negro Unificado) –, um dos vários instrumentos sociais de engajamento político da época. Os Cadernos surgiram principalmente em prol de um autorreconhecimento, conscientização política e luta para que a população negra tivesse acesso à educação e aos bens culturais.
A primeira edição, formatada em tamanho bolso e custeada pelos oito poetas que nela figuravam, recebeu um grande lançamento, circulou em algumas poucas livrarias e também de mão em mão. Desde então, foi lançado um volume por ano da coletânea, cuja editoração é feita pelo Quilombhoje, grupo de escritores comprometidos com a divulgação e circulação da produção literária negra no Brasil.
“O dia que os críticos de literatura brasileira estiverem mais atentos pra escrever a história da literatura brasileira, querendo ou não eles vão incorporar a história do grupo Quilombhoje. Tem que ser incorporada. Na área de literatura brasileira como um todo, é o único grupo que [...] tem uma publicação ininterrupta durante 33 anos. [...] Acho que quando surgirem historiadores, críticos que tenham uma visão mais ampla da literatura, vai ser incorporada. Essa é a dívida que a literatura brasileira tem com o grupo Quilombhoje.” |2|
Foi em meados da década de 1970 que os jovens negros começavam a ocupar em quantidade as universidades – ainda assim constituindo uma exceção diante da população negra como um todo, que continuava excluída espacialmente, pois constantemente empurrada para as periferias a partir dos programas habitacionais de governos e municípios, além de marginalizada também economicamente e culturalmente.
“Aquele jovem negro chegando à universidade e não encontrando representações de seu povo na literatura, nos estudos históricos e sociológicos, se pergunta: por quê? Tinha-se até então a imagem – o senso comum – de que o negro não produzia literatura e conhecimento [...]” |3|
Leia mais: O mito da democracia racial a serviço do racismo velado no Brasil
Vozes da literatura negro-brasileira
Muitos são os expoentes da literatura negra no Brasil atualmente. A seguir, você encontra uma breve lista com alguns autores e autoras mais conhecidos, por ordem de nascimento, com um trecho de amostragem de sua obra.
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Maria Firmina dos Reis
Primeira mulher a publicar um romance no Brasil, o trabalho de Maria Firmina dos Reis foi um precursor da literatura abolicionista brasileira. Assinado com o pseudônimo “uma maranhense”, Úrsula foi lançado em 1859.
A autora, filha de pai negro e mãe branca, foi criada na casa da tia materna, em contato direto com a literatura desde a infância. Além de escritora, Maria Firmina dos Reis foi também professora e chegou a lecionar para salas mistas – meninos e meninas, brancos e negros, todos na mesma turma –, uma grande inovação no século XIX, e também um enfrentamento às instituições patriarcais e escravistas da época.
“Meteram-me a mim e a mais trezentos companheiros de infortúnio e de cativeiro no estreito e infecto porão de um navio. Trinta dias de cruéis tormentos, e de falta absoluta de tudo quanto é mais necessário à vida passamos nessa sepultura até que abordamos as praias brasileiras. Para caber a mercadoria humana no porão fomos amarrados em pé e para que não houvesse receio de revolta, acorrentados como os animais ferozes das nossas matas, que se levam para recreio dos potentados da Europa. Davam-nos a água imunda, podre e dada com mesquinhez, a comida má e ainda mais porca: vimos morrer ao nosso lado muitos companheiros à falta de ar, de alimento e de água. É horrível lembrar que criaturas humanas tratem a seus semelhantes assim e que não lhes doa a consciência de levá-los à sepultura asfixiados e famintos!”
(Trecho do romance Úrsula)
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Luiz Gama
Grande líder abolicionista, Luiz Gama era filho de pai português e de Luiza Mahin, negra acusada de ser uma das lideranças da Revolta dos Malês, um grande levante de escravos que ocorreu em Salvador em 1835. Vendido pelo pai aos 10 anos de idade, foi escravo doméstico até os 18 anos, quando consegue provar que, letrado e filho de mulher livre, não podia ser cativo. Ingressou na Força Pública da Província de São Paulo e depois tornou-se escrevente na Secretaria de Polícia, onde teve acesso à biblioteca do delegado.
Autodidata, tornou-se renomado advogado, atuando nos tribunais em prol da libertação de diversos negros irregularmente mantidos em cativeiro ou acusados de crimes contra os senhores. Dava também conferências e escrevia artigos polêmicos nos quais erguia a bandeira do abolicionismo e lutava diretamente contra os ideais de branqueamento da sociedade. Publicava poemas sob o pseudônimo de “Afro”, “Getulino” ou “Barrabás”, e lançou seu primeiro livro em 1859, coletânea de versos satíricos de nome Primeiras Trovas Burlescas de Getulino.
Assim o escravo agrilhoado canta.
Tibulo
Canta, canta Coleirinho,
Canta, canta, o mal quebranta;
Canta, afoga mágoa tanta
Nessa voz de dor partida;
Chora, escravo, na gaiola
Terna esposa, o teu filhinho,
Que, sem pai, no agreste ninho
Lá ficou sem ti, sem vida.
Quando a roxa aurora vinha
Manso e manso, além dos montes,
De ouro orlando os horizontes,
Matizando as crespas vagas,
— Junto ao filho, à meiga esposa
Docemente descantavas,
E na luz do sol banhavas
Finas penas — noutras plagas.
Hoje, triste já não trinas,
Como outrora nos palmares;
Hoje, escravo, nos solares
Não te embala a dúlia brisa;
Nem se casa aos teus gorjeios
O gemer das gotas alvas
— Pelas negras rochas calvas —
Da cascata que desliza.
Não te beija o filho tenro,
Não te inspira a fonte amena,
Nem da lua a luz serena
Vem teus ferros pratear.
Só de sombras carregado,
Da gaiola no poleiro
Vem o tredo cativeiro,
Mágoa e prantos acordar.
Canta, canta Coleirinho,
Canta, canta, o mal quebranta;
Canta, afoga mágoa tanta
Nessa voz de dor partida;
Chora, escravo, na gaiola
Terna esposa, o teu filhinho,
Que, sem pai, no agreste ninho
Lá ficou sem ti, sem vida.
(Primeiras trovas burlescas de Getulino)
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Solano Trindade (Recife – PE, 1908 – Rio de Janeiro – RJ, 1974 )
Francisco Solano Trindade foi poeta, militante, folclorista, ator, dramaturgo e cineasta. Fundador da Frente Negra Pernambucana e do Centro de Cultura Afro-Brasileira na década de 1930, foi um precursor do movimento negro no Brasil. Depois, residindo no Rio de Janeiro, funda em Caxias, em 1950, o Teatro Popular Brasileiro (TPB), cujo elenco era formado por operários, estudantes e domésticas, e cujos espetáculos foram montados dentro e fora do Brasil.
Em 1960, muda-se para Embu, cidade no entorno sul da capital de São Paulo, e sua perene e intensa ebulição cultural transforma o território, atraindo artistas e desenvolvendo a arte e o artesanato locais. O município hoje chama-se Embu das Artes, e é atração turística da região. Solano Trindade tem 9 obras publicadas e leva o epíteto de poeta do povo e do negro, por sua ênfase militante na popularização da arte e no resgate da identidade negra brasileira.
Sou negro
A Dione Silva
Sou Negro
meus avós foram queimados
pelo sol da África
minh'alma recebeu o batismo dos tambores
atabaques, gonguês e agogôs
Contaram-me que meus avós
vieram de Loanda
como mercadoria de baixo preço
plantaram cana pro senhor do engenho novo
e fundaram o primeiro Maracatu.
Depois meu avô brigou
como um danado nas terras de Zumbi
Era valente como quê
Na capoeira ou na faca
escreveu não leu
o pau comeu
Não foi um pai João
humilde e manso.
Mesmo vovó
não foi de brincadeira
Na guerra dos Malês
ela se destacou.
Na minh'alma ficou
o samba
o batuque
o bamboleio
e o desejo de libertação.
(em O poeta do povo, 1999)
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Carolina Maria de Jesus
Primeira autora negra brasileira a conhecer a fama no mundo editorial, Carolina Maria de Jesus teve pouco acesso aos recursos básicos da vida em sociedade. Cursou apenas os dois primeiros anos do Ensino Fundamental e viveu uma vida marcada pela miséria.
Mantinha diários e cadernos onde escrevia poemas e tomava notas sobre a desgastante realidade que se impunha à sua volta. Foi descoberta por um jornalista quando morava na favela do Canindé, em São Paulo, vivendo como catadora de lixo.
É principalmente desse período que trata o livro Quarto de Despejo: Diário de uma favelada, a mais conhecida de suas publicações, onde a autora evidencia a situação marginalizada em que vivia, lutando contra a fome, a sujeira, o racismo entre os moradores da favela e os transeuntes da cidade, entre outras mazelas.
A obra vendeu mais de 10 mil exemplares na semana do lançamento, e 100 mil durante o ano. Em vida, Carolina publicou ainda mais três obras, e outras quatro foram lançadas após sua morte.
“13 de Maio. Hoje amanheceu chovendo. É um dia simpático para mim. É o dia da Abolição. Dia que comemoramos a libertação dos escravos.
...Nas prisões os negros eram os bodes expiatorios. Mas os brancos agora são mais cultos. E não nos trata com desprezo. Que Deus ilumine os brancos para que os pretos sejam feliz.
Continua chovendo. E eu tenho só feijão e sal. A chuva está forte. Mesmo assim, mandei os meninos para a escola. Estou escrevendo até passar a chuva, para eu ir lá no senhor Manuel vender os ferros. Com o dinheiro dos ferros vou comprar arroz e linguiça. A chuva passou um pouco. Vou sair. ...Eu tenho tanto dó dos meus filhos. Quando eles vê as coisas de comer eles brada:
– Viva a mamãe!
A manifestação agrada-me. Mas eu já perdi o hábito de sorrir. Dez minutos depois eles querem mais comida. Eu mandei o João pedir um pouquinho de gordura a Dona Ida. Ela não tinha. Mandei-lhe um bilhete assim:
– “Dona Ida peço-te se pode me arranjar um pouco de gordura, para eu fazer uma sopa para os meninos. Hoje choveu e eu não pude catar papel. Agradeço, Carolina”.
...Choveu, esfriou. É o inverno que chega. E no inverno a gente come mais. A Vera começou pedir comida. E eu não tinha. Era a reprise do espetaculo. Eu estava com dois cruzeiros. Pretendia comprar um pouco de farinha para fazer um virado. Fui pedir um pouco de banha a Dona Alice. Ela deu-me a banha e arroz. Era 9 horas da noite quando comemos.
E assim no dia 13 de maio de 1958 eu lutava contra a escravatura atual – a fome!”
(Quarto de despejo: diário de uma favelada)
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Maria da Conceição Evaristo de Brito
Professora, pesquisadora, poeta, contista e romancista, Conceição Evaristo é uma das mais celebradas autoras contemporâneas do Brasil. Estreou na literatura em 1990, divulgando suas poesias nos Cadernos Negros.
Doutora em Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense, dedica sua pesquisa à produção crítica de autores negros – no Brasil e também em Angola. Lançou seu primeiro romance, Ponciá Vicêncio, em 2003, e desde então sua obra tem sido objeto de pesquisa no Brasil e no exterior, contando com cinco títulos traduzidos para o inglês e o francês. Sua obra elege a mulher negra como a protagonista por excelência, misturando ficção e realidade, num conceito que a autora chamou “escrevivências”.
Meu Rosário
Meu rosário é feito de contas negras e mágicas.
Nas contas de meu rosário eu canto Mamãe Oxum e falo
padres-nossos, ave-marias.
Do meu rosário eu ouço os longínquos batuques do
meu povo
e encontro na memória mal-adormecida
as rezas dos meses de maio de minha infância.
As coroações da Senhora, onde as meninas negras,
apesar do desejo de coroar a Rainha,
tinham de se contentar em ficar ao pé do altar
lançando flores.
As contas do meu rosário fizeram calos
nas minhas mãos,
pois são contas do trabalho na terra, nas fábricas,
nas casas, nas escolas, nas ruas, no mundo.
As contas do meu rosário são contas vivas.
(Alguém disse que um dia a vida é uma oração,
eu diria porém que há vidas-blasfemas).
Nas contas de meu rosário eu teço entumecidos
sonhos de esperanças.
Nas contas do meu rosário eu vejo rostos escondidos
por visíveis e invisíveis grades
e embalo a dor da luta perdida nas contas
do meu rosário.
Nas contas de meu rosário eu canto, eu grito, eu calo.
Do meu rosário eu sinto o borbulhar da fome
No estômago, no coração e nas cabeças vazias.
Quando debulho as contas de meu rosário,
eu falo de mim mesma em outro nome.
E sonho nas contas de meu rosário lugares, pessoas,
vidas que pouco a pouco descubro reais.
Vou e volto por entre as contas de meu rosário,
que são pedras marcando-me o corpo-caminho.
E neste andar de contas-pedras,
o meu rosário se transmuda em tinta,
me guia o dedo,
me insinua a poesia.
E depois de macerar conta por conto do meu rosário,
me acho aqui eu mesma
e descubro que ainda me chamo Maria.
(Poemas da Recordação e Outros Movimentos, 2006)
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Cuti
Luiz Silva, conhecido pelo pseudônimo de Cuti, é um dos mais destacados nomes da intelectualidade negra brasileira. Mestre e doutor em Letras pela Unicamp, Cuti é pesquisador da produção literária negra no Brasil, além de poeta, contista, dramaturgo e militante.
É um dos fundadores e mantenedores das publicações Cadernos Negros e da ONG Quilombhoje Literatura. Sua obra – ficcional e não ficcional – é dedicada à denúncia do racismo estrutural brasileiro e ao resgate da ancestralidade negra e da memória do movimento negro.
É dele o conceito de literatura negro-brasileira em oposição a uma ideia de literatura afrodescendente, pontuando como a remissão a África distancia ainda mais o sujeito negro brasileiro de sua história e vivência. São de autoria dele também estudos importantes sobre a obra de Cruz e Sousa, Lima Barreto, Luiz Gama, Machado de Assis, entre outros.
Quebranto
às vezes sou o policial que me suspeito
me peço documentos
e mesmo de posse deles
me prendo
e me dou porrada
às vezes sou o porteiro
não me deixando entrar em mim mesmo
a não ser
pela porta de serviço
às vezes sou o meu próprio delito
o corpo de jurados
a punição que vem com o veredicto
às vezes sou o amor que me viro o rosto
o quebranto
o encosto
a solidão primitiva
que me envolvo no vazio
às vezes as migalhas do que sonhei e não comi
outras o bem-te-vi com olhos vidrados
trinando tristezas
um dia fui abolição que me lancei de supetão no
espanto
depois um imperador deposto
a república de conchavos no coração
e em seguida uma constituição
que me promulgo a cada instante
também a violência dum impulso
que me ponho do avesso
com acessos de cal e gesso
chego a ser
às vezes faço questão de não me ver
e entupido com a visão deles
me sinto a miséria concebida como um eterno
começo
fecho-me o cerco
sendo o gesto que me nego
a pinga que me bebo e me embebedo
o dedo que me aponto
e denuncio
o ponto em que me entrego.
às vezes!...
(Negroesia)
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Elisa Lucinda dos Campos Gomes (Cariacica – ES, 1958)
Elisa Lucinda é jornalista de formação, mas atua como atriz, poeta e cantora. Considerada uma das artistas de sua geração que mais populariza a palavra poética, estreou oficialmente na literatura com o livro de poemas O Semelhante (1995), que originou uma peça de mesmo nome, em que a atriz interseccionava o texto dramatúrgico com diálogos abertos ao público.
Com mais de doze livros publicados entre contos e poesias, Elisa Lucinda é também conhecida por seus diversos papeis em novelas e filmes brasileiros, além de gravações sonoras de poemas declamados e de canções.
Mulata exportação
“Mas que nega linda
E de olho verde ainda
Olho de veneno e açúcar!
Vem nega, vem ser minha desculpa
Vem que aqui dentro ainda te cabe
Vem ser meu álibi, minha bela conduta
Vem, nega exportação, vem meu pão de açúcar!
(Monto casa procê mas ninguém pode saber, entendeu meu dendê?)
Minha tonteira minha história contundida
Minha memória confundida, meu futebol, entendeu meu gelol?
Rebola bem meu bem-querer, sou seu improviso, seu karaoquê;
Vem nega, sem eu ter que fazer nada. Vem sem ter que me mexer
Em mim tu esqueces tarefas, favelas, senzalas, nada mais vai doer.
Sinto cheiro docê, meu maculelê, vem nega, me ama, me colore
Vem ser meu folclore, vem ser minha tese sobre nego malê.
Vem, nega, vem me arrasar, depois te levo pra gente sambar.”
Imaginem: Ouvi tudo isso sem calma e sem dor.
Já preso esse ex-feitor, eu disse: “Seu delegado…”
E o delegado piscou.
Falei com o juiz, o juiz se insinuou e decretou pequena pena
com cela especial por ser esse branco intelectual…
Eu disse: “Seu Juiz, não adianta! Opressão, Barbaridade, Genocídio
nada disso se cura trepando com uma escura!”
Ó minha máxima lei, deixai de asneira
Não vai ser um branco mal resolvido
que vai libertar uma negra:
Esse branco ardido está fadado
porque não é com lábia de pseudo-oprimido
que vai aliviar seu passado.
Olha aqui meu senhor:
Eu me lembro da senzala
e tu te lembras da Casa-Grande
e vamos juntos escrever sinceramente outra história
Digo, repito e não minto:
Vamos passar essa verdade a limpo
porque não é dançando samba
que eu te redimo ou te acredito:
Vê se te afasta, não invista, não insista!
Meu nojo!
Meu engodo cultural!
Minha lavagem de lata!
Porque deixar de ser racista, meu amor,
não é comer uma mulata!
(O Semelhante)
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Cidinha da Silva (Belo Horizonte – MG, 1967)
Romancista, dramaturga, contista, pesquisadora, educadora, gestora cultural são algumas das áreas de atuação da artista e militante Cidinha da Silva. Fundadora do Instituto Kuanza e por algum tempo à frente da presidência do GELEDÉS – Instituto da Mulher Negra, a autora iniciou suas publicações com textos voltados à área de educação, como o artigo no livro Rap e educação, rap é educação (1999) e o capítulo em Racismo e antirracismo na educação: repensando nossa história (2001). Também foi organizadora do volume Ações afirmativas em educação: experiências brasileiras (2003).
Na literatura, Cidinha estreou com a coletânea Cada Tridente em seu lugar e outras crônicas (2006), e desde então tem pelo menos mais doze obras publicadas, nos mais diversos formatos – contos, crônicas, peças e livros infanto-juvenis, além de diversos artigos sobre relações raciais e de gênero publicados no Brasil e em outros países, como Uruguai, Costa Rica, Estados Unidos, Suíça, Itália e Inglaterra.
Melô da contradição
O menino negro estava muito triste e contava ao outro que apresentou seguidos atestados médicos à empresa para ser demitido. Assim, pretendia pagar a dívida do primeiro semestre na faculdade e trancar a matrícula, para retomar Deus sabe quando.
Mas isso é problema de todo jovem pobre que estuda em faculdade particular, não precisa ser negro para passar por isso. Tá certo, mas ocorre que ele trabalha como repositor de mercadorias em uma monumental rede de drogarias da cidade e sente-se humilhado porque a regra é que os repositores ascendam ao posto de vendedor (se forem bons funcionários e ele o era) num período máximo de oito meses. Ele já completou quinze e todos os colegas (brancos) que entraram junto com ele já são vendedores.
Ingênuo, como todo garoto sonhador de 23 anos, ele pensou que seria promovido (recompensado) pela aprovação no vestibular de uma boa universidade e por fazer um curso ligado à sua área profissional. Que nada, o gerente foi insensível e ainda disse que logo, logo, ele desistiria dessa idéia de curso superior, "coisa de burguês".
Ele chorou e deu socos no travesseiro pensando que o salário de vendedor, acrescido das comissões lhe permitiria pagar pelo menos cinco das sete mensalidades do semestre, e as duas restantes, a escola negociaria.
Fez outra investida, dessa vez para tentar diminuir o cansaço e os gastos com transporte. Pediu transferência para uma unidade da drogaria mais próxima da faculdade, onde ninguém quer trabalhar, principalmente quem goza do status de trabalhar numa loja do centro. Recebeu outro não. Aí, não lhe restou outro caminho senão pirraçar o gerente para ser despedido. Não podia se demitir porque perderia o seguro desemprego e aí não teria mesmo como quitar a dívida que o atormentava.
Ainda bem que as baladas do final de semana se aproximam e com elas o aconchego das moças brancas que o acham um neguinho bonitinho, gostosinho, de tirar o chapéu. E lhe dão a ilusão de ser menos negro e discriminado, por figurar como um pretinho básico do guarda-roupas.
(Cada Tridente em seu Lugar e outras crônicas)
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Ana Maria Gonçalves (Ibiá – MG, 1970)
Publicitária de formação, Ana Maria Gonçalves abandonou a profissão para se dedicar integralmente à literatura. Romancista, contista e pesquisadora, a autora lançou seu primeiro livro, Ao lado e à margem do que sentes por mim em 2002.
Um defeito de cor foi publicado quatro anos depois, em 2006, e sua narrativa é inspirada na história de Luiza Mahin, grande personagem negra da história brasileira, heroína da Revolta dos Malês, e em seu filho, o poeta Luiz Gama. O livro, que recupera mais de 90 anos de história do Brasil, foi contemplado com o Prêmio Casa de las Américas (Cuba), além de eleito um dos 10 melhores romances da década pelo jornal O Globo.
Ana Maria Gonçalves também trabalhou em universidades estrangeiras como escritora convidada e foi condecorada pelo governo brasileiro, em 2013, com a comenda da Ordem de Rio Branco, por préstimos nacionais de suas ações antirracistas.
“O escaler que carregava o padre já estava se aproximando do navio, enquanto os guardas distribuíam alguns panos entre nós, para que não descêssemos nuas à terra, como também fizeram com os homens na praia. Amarrei meu pano em volta do pescoço, como a minha avó fazia, e saí correndo pelo meio dos guardas. Antes que algum deles conseguisse me deter, pulei no mar. A água estava quente, mais quente que em Uidá, e eu não sabia nadar direito. Então me lembrei de Iemanjá e pedi que ela me protegesse, que me levasse até a terra. Um dos guardas deu um tiro, mas logo ouvi gritarem com ele, provavelmente para não perderem uma peça, já que eu não tinha como fugir a não ser para a ilha, onde outros já me esperavam. Ir para a ilha e fugir do padre era exatamente o que eu queria, desembarcar usando o meu nome, o nome que a minha avó e a minha mãe tinham me dado e com o qual me apresentaram aos orixás e aos voduns.”
(Um defeito de cor)
Créditos das imagens
[1] Quilombhoje/ Reprodução
[2] Domínio público / Acervo Arquivo Nacional
[4] Luis Gustavo Prado (Secom UnB) /Commons
[5] Mazza Edições/ Reprodução
Notas
|1| CUTI. Literatura negro-brasileira. São Paulo: Selo Negro, 2010, p. 25
|2| Conceição Evaristo em entrevista para Bárbara Araújo Machado, em 2010
|3| COSTA, Aline. “Uma história que está apenas começando”. Cadernos Negros – Três Décadas, vol. 30, p. 23