PUBLICIDADE
A escravidão foi uma instituição que existiu no Brasil durante mais de 300 anos, e indígenas, africanos e seus descendentes foram escravizados ao longo desse período. A história da escravização é também a história das fugas, das lutas, isto é, da resistência em geral daqueles que foram escravizados.
O Brasil foi o país que recebeu o maior número de africanos escravizados: quase cinco milhões. Isso significa que, ao longo dos séculos, a resistência contra a escravidão manifestou-se de diversas maneiras, e locais como o Quilombo dos Palmares foram transformados em um dos grandes símbolos de luta.
As revoltas de escravos também foram uma das formas de resistência extremamente comuns e aconteceram em todo o país. Poderiam ser violentas e resultarem na morte de senhores de escravos e suas famílias, e muitas procuravam a subversão da ordem. Quanto mais escravos presentes em uma região, maiores as chances de que revoltas acontecessem, e a Bahia do começo do século XIX ficou marcada por isso.
Acesse também: As formas de resistência praticadas pelos escravos
Tópicos deste artigo
Bahia escravista do século XIX
A Bahia do começo do século XIX ficou marcada por um grande número de revoltas de escravos. A Bahia também foi um dos estados que mais recebeu africanos escravizados pelo tráfico negreiro. Desses, os dois principais grupos eram os nagôs (iorubás) e os haussás. A quantidade de revoltas de escravos está diretamente relacionada com o alto número de escravos naquela província.
A grande presença de nagôs e haussás também contribui para isso, pois eram povos que tinham histórico recente de envolvimento com guerras. Assim, a Bahia da primeira metade do século XIX abrigou trinta revoltas de escravos, sendo que metade dessas aconteceu na década de 1820.|1| Uma das primeiras agitações desse período foi a Revolta de 1807.
Esse levante foi descoberto antes de ser iniciado, e sua descoberta aconteceu no mês de maio de 1807. Os escravos que se organizavam tinham em seus planos a realização de ataques contra igrejas católicas e suas imagens e queriam instalar uma autoridade muçulmana no poder de Salvador. Depois planejavam conquistar outros locais do Nordeste.
Inúmeras revoltas aconteceram nos anos seguintes, mas a história da resistência e das revoltas escravas ficou marcada pela Revolta do Malês, que aconteceu em Salvador, em 1835, e mobilizou 600 escravos em busca de sua liberdade. O temor causado por essa insurreição ficou gravado no imaginário dos senhores que temiam que uma nova ação desse tipo acontecesse no Brasil.
Participantes
A Revolta do Malês aconteceu em Salvador e passou-se na madrugada do dia 25 de janeiro de 1835. Naquela época, essa capital era uma das principais cidades escravistas do Brasil e possuía apenas 22% de sua população formada por brancos livres. Os escravos africanos (e seus descendentes) eram 40% da população total da cidade que, na época, era de 65 mil habitantes.|2|
Foi nesse cenário que se deu a maior revolta de escravos do Brasil. Os participantes da Revolta dos Malês foram na sua maioria nagôs, mas sabe-se também que o levante contou com a participação de africanos haussás e tapas (conhecidos também como nupes). A maioria dos envolvidos era muçulmana, mas muitos também eram adeptos de religiões de matriz africana.
O envolvimento dos muçulmanos foi algo marcante nesse acontecimento e evidenciou o papel da religião na luta por transformação social. A importância dos muçulmanos foi tão grande que influenciou na forma como essa revolta foi chamada. A palavra malês é oriunda de imalê, expressão que no idioma Iorubá significa muçulmano.
A revolta contou com a participação de 600 africanos escravizados, e os líderes dela combinaram para que ela acontecesse no final do Ramadã, mês sagrado para os muçulmanos. A revolta ficou marcada exatamente para o dia de Lailat al-Qadr, a festa da Noite da Glória — momento em que o Corão foi revelado para Muhammad (Maomé), o profeta do islamismo.
Os participantes da Revolta dos Malês eram todos africanos, e existem evidências que apontam que, se vitoriosos, os rebeldes pretendiam voltar-se contra toda a população nascida no Brasil. Os envolvidos também eram majoritariamente escravos urbanos, e pouquíssimos escravos da lavoura participaram dessa revolta. Os poucos escravos da lavoura que participaram eram do Recôncavo Baiano (arredores de Salvador).
Leia também: Guerra dos Farrapos — umas das revoltas que ocorreram no Período Regencial
Líderes
A Revolta dos Malês teve oito líderes, cuja maioria era nagô. Seus nomes eram Ahuna; Pacífico Licutan; Sule ou Nicobé; Dassalu ou Damalu; Gustar; Manoel Calafete (liberto); Luís Sanim; e Elesbão do Carmo ou Dandará. A listagem desses nomes foi apresentada pelo historiador João José Reis.|3|
Desfecho
A Revolta dos Malês eclodiu abruptamente na madrugada do dia 25 de janeiro, porque a trama havia sido denunciada e todo o planejamento ruiu-se quando isso aconteceu. A revolta tinha sido planejada pelos escravos urbanos, que se aproveitavam da maior liberdade de locomoção que possuíam em relação aos escravos que trabalhavam na lavoura.
Como mencionado, a revolta teve um forte envolvimento com o islamismo, e isso ficou perceptível porque os africanos que se rebelaram estavam usando um abadá branco, traje típico dos muçulmanos. Além disso, muitos deles usavam amuletos com passagens do Corão escritas em árabe. Eles acreditavam que esses amuletos protegeriam seus corpos.
Os combates espalharam-se horas a fio pelas ruas de Salvador e resultaram na morte de 70 dos africanos envolvidos e em nove mortes nas forças que lutavam contra os rebeldes. A última batalha deu-se em um local de Salvador chamado Água de Meninos. Muitos dos africanos, encurralados, procuraram fugir pelo mar e acabaram afogados. A Revolta dos Malês, portanto, fracassou.
Leia também: Revolta dos Malês — a maior revolta de escravos da história brasileira
Punições
As punições contra os envolvidos foram severas e alcançaram até os libertos que não se envolveram com a dita revolta. Os punidos sofreram com a prisão, o açoite, a deportação e a execução. Ao todo, quatro dos envolvidos foram condenados à morte, sendo eles: Jorge da Cruz Barbosa (Ajahi), Pedro, Gonçalo e Joaquim. Esses quatro foram executados por fuzilamento.
Essa intentona contribuiu para aumentar a repressão sobre a população de escravos e libertos em Salvador. Uma lei aprovada naquele ano determinava que todos os africanos e descendentes suspeitos de envolverem-se com revoltas escravas seriam deportados para o continente africano. Existem estatísticas que apontam que houve a deportação de milhares de negros para a África.
Essa rigidez acontecia porque os escravocratas temiam que uma rebelião de escravos nos moldes da Revolução Haitiana acontecesse no Brasil. Conforme pontuou João José Reis, “o Haiti penetrou, como um pesadelo, as casas senhoriais, os palácios governamentais e mesmo os clubs rebeldes brancos”. |4|
|1| REIS, João José. Revoltas Escravas. In.: SCHWARCZ, Lilia Moritz e GOMES, Flávio (org.). Dicionário da escravidão e liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2018. p. 393.
|2| REIS, João José. A Revolta dos Malês em 1835. Para acessar, clique aqui.
|3| Idem nota 2.
|4| REIS, João José. Nos achamos em campo a tratar da liberdade: a resistência negra no Brasil oitocentista. In.: MOTA, Carlos Guilherme (org.). Viagem incompleta: a experiência brasileira. São Paulo: Senac, 1999. p. 249.
*Crédito das imagens: Stefano Ember e Shutterstock
Por Daniel Neves
Graduado em História