Alguns escritores da literatura brasileira possuem uma relação interessante com o mundo da música. Vinícius de Moraes, por exemplo, além de poeta, foi exímio compositor e um dos nomes mais importantes do movimento Bossa Nova, iniciado no final da décaca de 1950, no Rio de Janeiro. Antônio Cícero, um dos nomes mais interessantes da literatura contemporânea, viu seus poemas serem transformados em música pela irmã, a cantora Marina Lima. Chico Buarque e Caetano Veloso fizeram-nos repensar sobre as fronteiras (se é que elas existem) que separam os gêneros letra de música e poema. Além desses “cantautores” citados, existem muitos outros que sempre fizeram da palavra o forte de suas canções.
Arnaldo Antunes, músico, poeta, compositor e artista visual brasileiro, talvez seja hoje o maior exemplo do dialogismo entre a literatura e a música. Nome forte do rock nacional da década de 1980, foi um dos fundadores e líderes de uma das bandas de maior sucesso de nossa música, os Titãs. Sua jornada poética começou em 1986, quando teve publicado o livro Ou e, que foi composto de poemas que exploram a dimensão visual das palavras. Depois da estreia bem-sucedida, muitos outros livros vieram. Em 1992, o artista recebeu o maior prêmio concedido a um autor da literatura brasileira, o Prêmio Jabuti, na categoria Poesia. Ao ler seus poemas – muitos deles musicados quando Arnaldo ainda era integrante dos Titãs, outros em sua carreira solo de músico –, não espere um encontro com o convencional: seus textos são criativos, o poeta-músico (difícil defini-lo!) explora diferentes técnicas de diagramação, diferentes fontes e cores diversas, elementos indispensáveis para alcançar o sentido pretendido em suas composições.
Arnaldo Antunes utiliza recursos oriundos de tendências literárias distintas para construir seus poemas, sobretudo do Concretismo e da Poesia Marginal. Entre esses recursos, estão o aproveitamento icônico (a imagem é elemento essencial de sua poesia), o jogo de palavras, o ludismo (há em sua escrita o encantamento de um olhar primitivo, quase infantil), a originalidade, a escrita telegráfica e a objetividade. Para que você entenda toda a genialidade desse artista tão peculiar, excêntrico, inventivo e inquieto, o Brasil Escola selecionou para você cinco poemas de Arnaldo Antunes que vão desconstruir seus conceitos sobre a poesia. Boa leitura!
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Cultura
O girino é o peixinho do sapo
O silêncio é o começo do papo
O bigode é a antena do gato
O cavalo é pasto do carrapato
O cabrito é o cordeiro da cabra
O pescoço é a barriga da cobra
O leitão é um porquinho mais novo
A galinha é um pouquinho do ovo
O desejo é o começo do corpo
Engordar é a tarefa do porco
A cegonha é a girafa do ganso
O cachorro é um lobo mais manso
O escuro é a metade da zebra
As raízes são as veias da seiva
O camelo é um cavalo sem sede
Tartaruga por dentro é parede
O potrinho é o bezerro da égua
A batalha é o começo da trégua
Papagaio é um dragão miniatura
Bactérias num meio é cultura.
Arnaldo Antunes

Ao lado do poeta Augusto de Campos, Arnaldo Antunes é um dos precursores da poesia digital ou eletrônica
Os buracos do espelho
o buraco do espelho está fechado
agora eu tenho que ficar aqui
com um olho aberto, outro acordado
no lado de lá onde eu caí
pro lado de cá não tem acesso
mesmo que me chamem pelo nome
mesmo que admitam meu regresso
toda vez que eu vou a porta some
a janela some na parede
a palavra de água se dissolve
na palavra sede, a boca cede
antes de falar, e não se ouve
já tentei dormir a noite inteira
quatro, cinco, seis da madrugada
vou ficar ali nessa cadeira
uma orelha alerta, outra ligada
o buraco do espelho está fechado
agora eu tenho que ficar agora
fui pelo abandono abandonado
aqui dentro do lado de fora
Arnaldo Antunes

Os poemas de Arnaldo Antunes exploram a dimensão visual das palavras
As coisas
As coisas têm peso,
massa, volume, tamanho,
tempo, forma, cor,
posição, textura, duração,
densidade, cheiro, valor.
Consistência, profundidade,
contorno, temperatura,
função, aparência, preço,
destino, idade, sentido.
As coisas não têm paz.
Arnaldo Antunes / Gilberto Gil
Por Luana Castro
Graduada em Letras