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Eu lírico

eu lírico é a voz que enuncia o poema. Pode ser mais próximo ou mais distante do autor, mas jamais deve ser confundido com o poeta.

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O eu lírico é um elemento fundamental da poesia. Quando lemos um poema, estamos diante de uma obra literária do gênero lírico, isto é, uma composição escrita que evidencia sobretudo a subjetividade – as sensações, emoções, a interioridade de um sujeito. Mas quem é esse sujeito? Será esse sujeito o próprio autor do poema? Seriam, então, todos os poemas uma parte biográfica da vida dos poetas?

Na verdade, não são os poetas que se enunciam nos versos. A poesia fala por meio do eu lírico.

Leia também: Epopeia – poema narrativo de larga extensão que conta sobre feitos heroicos

Tópicos deste artigo

O que é eu lírico?

Eu lírico, eu poético ou sujeito lírico são nomenclaturas utilizadas para indicar a voz que enuncia o poema. O gênero lírico é aquele destinado a expressar emoções, sensações, disposições psíquicas, ou seja, a vivência de um eu em seu encontro com o mundo. Mas esse eu lírico, essa voz do poema, não é necessariamente o autor, mas sim um eu fictício, que pode ou não ter características do eu autoral.

O eu lírico é parte essencial do poema.
O eu lírico é parte essencial do poema.

Em um famoso poema intitulado “Autopsicografia”, Fernando Pessoa nos diz: “O poeta é um fingidor./ Finge tão completamente/ Que chega a fingir que é dor/ A dor que deveras sente.” Veja: aquilo que é sentido pelo poeta, ou seja, pelo autor, não corresponde exatamente àquilo que foi escrito. Isso porque a arte poética modela, por meio da linguagem, essas experiências e impressões causadas no autor. E é por meio da voz do eu lírico que o poema enuncia-se.

Devemos lembrar que a potência da poesia não reside em um desabafo autoral, mas em uma enunciação de sentimentos que ultrapassam a vivência individual do poeta. Quando lemos um poema, nos conectamos com aquela emoção ou sensação, pois ela é universal.

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Veja alguns exemplos:

Oração do Milho

Senhor, nada valho.

Sou a planta humilde dos quintais pequenos e das

lavouras pobres.

Meu grão, perdido por acaso,

nasce e cresce na terra descuidada.

Ponho folhas e haste, e se me ajudardes, Senhor,

mesmo planta de acaso, solitária,

dou espigas e devolvo em muitos grãos

o grão perdido inicial, salvo por milagre,

que a terra fecundou.

Sou a planta primária da lavoura.

Não me pertence a hierarquia tradicional do trigo

E de mim não se faz o pão alvo universal. [...]

(Cora Coralina)

O poema “Oração ao milho” é escrito em primeira pessoa e enunciado pela própria voz do milho. Não é a autora que se diz a planta primária da lavoura. É o próprio milho que “fala” no poema.

Lamento da noiva do soldado

Como posso ficar nesta casa perdida,
neste mundo da noite,
sem ti?

Ontem falava a tua boca à minha boca...
E agora que farei,
sem saber mais de ti?

Pensavam que eu vivesse por meu corpo e minh’alma!
Todos os olhos são de cegos... Eu vivia
unicamente de ti!

Teus olhos, que me viram, como podem ser fechados?
Aonde foste, que não me chamas, não me pedes,
como serei agora, sem ti?

Cai neve nos teus pés, no teu peito, no teu
coração... Longe e solitário... Neve, neve...
E eu fervo em lágrimas, aqui!

(Cecília Meireles)

A voz desse poema de Cecília Meireles é a noiva do soldado, aquela que fica viúva antes mesmo de casar-se – é a que fica sabendo que o noivo morreu em combate. É a partir dessa voz que a poeta vai enunciar os sentimentos da ausência, do desespero, da tristeza, de se estar perpetuamente apartada de quem se ama.

Anos dourados

Parece que dizes
Te amo, Maria
Na fotografia
Estamos felizes
Te ligo afobada
E deixo confissões
No gravador
Vai ser engraçado
Se tens um novo amor [...]

(Chico Buarque)

Chico Buarque é famoso por suas composições cuja voz é um eu lírico feminino. É o caso de “Anos dourados”: o eu lírico, Maria, é quem enuncia a letra da canção; é quem liga afobada para o ex-amor.

Veja também: Luís Vaz de Camões – considerado o maior poeta da língua portuguesa

Como identificar o eu lírico?

Como a composição poética envolve a criação artística por meio da linguagem, sempre que um eu enuncia-se no poema, uma nova entidade é criada. Não se trata do poeta que existe no mundo, que possui uma aparência, postura determinada diante dos fatos etc., mas de uma voz não material que modela e versifica as impressões vivenciadas pelo autor, transformando-as em versos. Leia o poema “Canção final”, de Carlos Drummond de Andrade.

Canção final

Oh! se te amei, e quanto!
Mas não foi tanto assim.
Até os deuses claudicam
em nugas de aritmética.
Meço o passado com régua
de exagerar as distâncias.
Tudo tão triste, e o mais triste
é não ter tristeza alguma.
É não venerar os códigos
de acasalar e sofrer.
É viver tempo de sobra
sem que me sobre miragem.
Agora vou-me. Ou me vão?
Ou é vão ir ou não ir?
Oh! se te amei, e quanto,
quer dizer, nem tanto assim.

(Carlos Drummond de Andrade)

Em primeira pessoa, o eu lírico não enuncia uma particularidade de sua vida, mas a dissolução de uma relação amorosa – que não necessariamente precisa partir de um dado biográfico. O eu lírico dá voz a um sentimento universal e não é necessário que o autor pessoalmente tenha vivido o que esse eu enuncia.

Por vezes, entretanto, o eu lírico está muito próximo da voz autoral, isto é, enuncia características que são, de fato, parte da vida do autor. Leia o poema “Confidência do Itabirano”, também de Drummond:

Confidência do Itabirano

Alguns anos vivi em Itabira.
Principalmente nasci em Itabira.
Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro.
Noventa por cento de ferro nas calçadas.
Oitenta por cento de ferro nas almas.
E esse alheamento do que na vida é porosidade e comunicação.

A vontade de amar, que me paralisa o trabalho,
vem de Itabira, de suas noites brancas, sem mulheres e sem horizontes.
E o hábito de sofrer, que tanto me diverte,
é doce herança itabirana.

De Itabira trouxe prendas diversas que ora te ofereço:
esta pedra de ferro, futuro aço do Brasil;
este São Benedito do velho santeiro Alfredo Duval;
este couro de anta, estendido no sofá da sala de visitas;
este orgulho, esta cabeça baixa…

Tive ouro, tive gado, tive fazendas.
Hoje sou funcionário público.
Itabira é apenas uma fotografia na parede.
Mas como dói!

(Carlos Drummond de Andrade)

Nesse caso, Drummond explicita um dado biográfico: o eu lírico desse poema corresponde ao sujeito autor, nascido em Itabira, Minas Gerais, funcionário público, que contempla sua cidade natal a partir de um retrato e das características que dela herdou. Esse eu lírico itabirano é, portanto, uma voz autoral, em que a primeira pessoa corresponde de fato à vivência do autor. Sabemos disso porque ela revela uma relação muito particular com determinada localidade e situação.

Diferença entre eu lírico e narrador

Chamamos de narrador a entidade que conta uma história. De maneira semelhante ao eu lírico, ele também não deve ser confundido com o autor, isto é, a pessoa que assina a obra. Entretanto, os dois termos não são equivalentes: o eu lírico não conta uma história, mas dá voz a uma sensação, a um sentimento – a lírica é o gênero das emoções, por excelência.

Assim, ele é necessariamente um “eu”, uma primeira pessoa envolvida naquilo que é enunciado pelo poema. O narrador, por sua vez, não precisa necessariamente participar da história que conta – pode ser um narrador observador, por exemplo, que enuncia uma história que não lhe pertence, ou ainda um narrador onisciente, capaz de mergulhar nos mais íntimos pensamentos das personagens.

Acesse também: Parnasianismo – movimento literário que produziu apenas poesia

Exercícios resolvidos

Questão 1 - (ENEM 2018)

o que será que ela quer
essa mulher de vermelho
alguma coisa ela quer
pra ter posto esse vestido
não pode ser apenas
uma escolha casual
podia ser um amarelo
verde ou talvez azul
mas ela escolheu vermelho
ela sabe o que ela quer
e ela escolheu vestido
e ela é uma mulher
então com base nesses fatos
eu já posso afirmar
que conheço o seu desejo
caro watson, elementar:
o que ela quer sou euzinho
sou euzinho o que ela quer
só pode ser euzinho
o que mais podia ser

FREITAS, A. Um útero é do tamanho de um punho. São Paulo: Cosac Naify, 2013.

No processo de elaboração do poema, a autora confere ao eu lírico uma identidade que aqui representa a

A) hipocrisia do discurso alicerçado sobre o senso comum.

B) mudança de paradigmas de imagem atribuídos à mulher.

C) tentativa de estabelecer preceitos da psicologia feminina.

D) importância da correlação entre ações e efeitos causados.

E) valorização da sensibilidade como característica de gênero.

Resolução

Alternativa C. O eu lírico do poema de Angélica Freitas acredita elencar normas do funcionamento psicológico feminino: se escolheu uma roupa vermelha, não foi por acaso, mas porque queria chamar atenção dele, esse “euzinho”, esse homem que enuncia o poema.

Questão 2 - (ENEM 2019)

Isto

Dizem que finjo ou minto
Tudo que escrevo. Não.
Eu simplesmente sinto
Com a imaginação.
Não uso o coração.

Tudo o que sonho ou passo
O que me falha ou finda,
É como que um terraço
Sobre outra coisa ainda.
Essa coisa é que é linda.

Por isso escrevo em meio
Do que não está ao pé,
Livre do meu enleio,
Sério do que não é.
Sentir? Sinta quem lê!

PESSOA, F. Poemas escolhidos. São Paulo: Globo, 1997.

Fernando Pessoa é um dos poetas mais extraordinários do século XX. Sua obsessão pelo fazer poético não encontrou limites. Pessoa viveu mais no plano criativo do que no plano concreto, e criar foi a grande finalidade de sua vida. Poeta da “Geração Orfeu”, assumiu uma atitude irreverente. Com base no texto e na temática do poema “Isto”, conclui-se que o autor

A) revela seu conflito emotivo em relação ao processo de escritura do texto.

B) considera fundamental para a poesia a influência dos fatos sociais.

C) associa o modo de composição do poema ao estado de alma do poeta.

D) apresenta a concepção do Romantismo quanto à expressão da voz do poeta.

E) separa os sentimentos do poeta da voz que fala no texto, ou seja, do eu lírico.

Resolução

Alternativa E. O poema versa justamente sobre a separação entre o que sente o autor e aquilo que é enunciado pelo eu lírico. Não é o sujeito que escreve que necessariamente sente aquilo que está escrito: ele inventa, sente “com a imaginação”, não faz de suas palavras um espelho biográfico.

 

Por Luiza Brandino
Professora de Literatura

Escritor do artigo
Escrito por: Luiza Brandino Escritor oficial Brasil Escola

Gostaria de fazer a referência deste texto em um trabalho escolar ou acadêmico? Veja:

BRANDINO, Luiza. "Eu lírico"; Brasil Escola. Disponível em: https://brasilescola.uol.com.br/literatura/eu-lirico.htm. Acesso em 21 de dezembro de 2024.

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