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Jean-Paul Sartre foi uma das figuras que mais contribuíram para a formação de um pensamento e de uma filosofia contemporâneos. Figura irreverente, o filósofo e escritor possui extensa obra escrita em prosa, na qual consta ensaios e tratados filosóficos, romances, além de peças de teatro e roteiros para o cinema. Sartre pode ser considerado o filósofo existencialista que mais se desdobrou para teorizar essa corrente de pensamento, tendo escrito a sua obra magna: O ser e o nada, na qual descreve os principais conceitos da teoria existencialista do século XX.
Leia também: Principais filósofos e teorias da filosofia contemporânea
Tópicos deste artigo
- 1 - Biografia de Sartre
- 2 - Principais ideias de Sartre
- 3 - Existencialismo de Sartre
- 4 - Principais obras de Sartre
- 5 - Sartre e Simone de Beauvoir
Biografia de Sartre
Jean-Paul Charles Aymard Sartre nasceu em Paris, em 21 de junho de 1905. Seu pai, Jean-Baptiste Marie Aymard Sartre, faleceu em 1906. Sua mãe, Anne-Marie Schweitzer, mudou-se com o seu bebê para a casa de seu pai, o professor de alemão Charles Scweitzer, em Meudon.
A criação de Jean-Paul Sartre, tipicamente burguesa, proporcionou-lhe uma boa educação voltada para a literatura e para o aprendizado de idiomas e das culturas. Até os 10 anos de idade, fora educado pelo avô e por preceptores em casa. Desde cedo, o avô proporcionou ao neto o contato com grandes escritores, como Goethe, Mallarmé, Victor Hugo e Flaubert (este último influenciou decisivamente a filosofia de Sartre).
Sartre parecia afirmar que o contato com a grande literatura desde cedo e a ausência de seu pai formaram-no do jeito que era: um escritor com gosto pelas letras e criatividade (devido a suas leituras precoces) e um homem livre, por não ter tido, em sua formação, a figura repressiva paterna. Em 1921, estudando no Liceu Louis-le-Grand, conhece seu grande amigo Paul Nizan e a filosofia de Henri Bergson.
Em 1924, o jovem Sartre entra para o curso de Filosofia na Escola Normal Superior de Paris. O seu círculo social aumenta, tendo conhecido, além de Nizan e do professor Bergson, Raymond Aron. Lá conhece a filósofa que viria a ser sua companheira para o resto da vida, Simone de Beauvoir. Os dois mantiveram um relacionamento aberto, fora dos padrões aceitos para a época, além de nunca terem sido casados legalmente.
Segundo a escritora feminista Claudine Monteil (amiga de Beauvoir e Sartre por conta da militância feminista nos anos 1970), em entrevista para a jornalista Louise Hidalgo, da BBC, o casal firmou um “pacto segundo o qual eles compartilhavam o amor mais essencial de suas vidas, mas, ao mesmo tempo, tinham amantes”|1|.
Em 1928, Sartre conclui o curso de Filosofia e ingressa no serviço militar obrigatório, servindo até 1931 como meteorologista. Em seguida, ensina filosofia numa escola secundária. Nessa época, ele escreve um romance recusado pelos editores e, em 1933, vai para Berlim, onde se aprofunda na fenomenologia de Husserl, no existencialismo de Jaspers e Heidegger, além das obras de Kierkegaard. As ideias dos precursores da fenomenologia e do existencialismo, aliadas à leitura de Sartre de Nietzsche, fizeram-no fundar uma nova teoria existencialista. Ainda na Alemanha, redige o romance que viria a ser publicado mais tarde sob o título de A náusea.
Em 1939, Sartre foi convocado a servir o exército francês na Segunda Guerra Mundial, apesar das ideias pacifistas defendidas por ele desde seus tempos de graduação. Em 1940 foi capturado e preso em um campo de concentração, do qual consegue fugir em 1941, retornando a Paris e encontrando-se novamente com Simone de Beauvoir.
Nesse período, Sartre rompe de vez com o círculo intelectual burguês parisiense, com o qual já se desentendia desde 1924, e entra em um ciclo mais engajado politicamente, defendendo o socialismo marxista, o pacifismo e o antinacionalismo. Sartre também era contra o antissemitismo, a xenofobia e o racismo. Em 1941 ele funda o Socialismo e Liberdade — um grupo de resistência socialista e antifacista que ficou conhecido pelo engajamento e pela luta contra os ideais totalitários e nacionalistas fanáticos que assolavam a Europa.
Em 1943 o filósofo concluiu a sua obra O ser e o nada, iniciada em 1939, que daria luz total ao seu existencialismo. Em 1945, terminada a guerra, o grupo Socialismo e Liberdade foi encerrado e Sartre funda, com seus amigos, e também intelectuais franceses, Maurice Merleau-Ponty e Raymond Aron, a revista Os Tempos Modernos.
Dentro do movimento marxista, Sartre recebe duras críticas por conta de suas ideias existencialistas, que, aos olhos dos militantes, soavam como defesa de um individualismo talvez até liberal. Para desfazer esse estigma, Sartre profere a conferência O existencialismo é um humanismo e publica-a sob forma de livro, no qual aponta o caráter ético de pensar-se no sentido de um existencialismo filosófico.
A trajetória que unia a produção intelectual com o engajamento político continua em Sartre, assim como em Beauvoir. Sartre passa a interessar-se pela questão do colonialismo e as mazelas que estava causando aos países do então chamado terceiro mundo. Simone de Beauvoir, por sua vez, intensifica a sua militância no movimento feminista. Em 1961, o casal viaja para Cuba, onde conhece Che Guevara e Fidel Castro, e para o Brasil, onde conhece um casal de escritores famosos em nossa literatura, Zélia Gattai e Jorge Amado.
Em 1964, Sartre publica seu penúltimo livro, As palavras. No mesmo ano, ele foi agraciado com o Prêmio Nobel de Literatura, honraria que rejeitou. Em carta endereçada aos produtores do prêmio, o existencialista explica que a sua filosofia e a sua literatura são livres de amarras e de autoridades, e que “receber a honraria significa reconhecer a autoridade dos juízes, o que considera inadmissível concessão”|2|.
Em maio de 1968, quando estouraram os protestos estudantis em Paris que se espalharam pelo mundo, Sartre foi às ruas e manifestou-se junto aos estudantes, empunhando cartazes e enfrentando a polícia. Nessa época, o pensador também manteve contato com os filósofos franceses que se despontavam como jovens promissores, Michel Foucault e Gilles Deleuze.
Em 1971 um último trabalho foi publicado, trata-se de um estudo crítico sobre a obra de Gustave Flaubert. Em 1973, aos 67 anos de idade, a saúde de Sartre começa a oscilar. Devido à rotina de trabalho intensa (ele chegou a passar mais de 14 horas escrevendo em um único dia), acompanhada do uso excessivo de álcool, tabaco e drogas estimulantes, o filósofo foi acometido por um quadro clínico complicado.
Sua situação envolvia diabetes, hipertensão e problemas circulatórios que o causariam, somando-se tudo, um glaucoma que o deixou quase totalmente cego. A partir daí, sua saúde vai sendo fragilizada e o filósofo começa a ser tomado por terríveis dores e agonia até a sua morte, com pequenos quadros de restabelecimento, como descreveu Simone de Beauvoir em seu apaixonado e triste texto sobre a morte do companheiro: A cerimônia do adeus. Sartre morreu em 15 de abril de 1980.
Veja também: Escola de Frankfurt – escola de pensamento contemporânea à produção de Sartre
Principais ideias de Sartre
Sartre era um defensor incondicional da liberdade. Em seus escritos, o filósofo deixa claro que o ser humano estava, paradoxalmente, condenado a ser livre. Isso era o pressuposto para a sua teoria existencialista e, mais profundamente, deixava claro a recusa dele por qualquer tipo de amarra social.
Politicamente o filósofo caminhava para o mesmo rumo, afirmando ser a liberdade a essência humana aplicada na política. Qualquer tendência oposta à liberdade seria desumana. O filósofo engajou-se na luta comunista, e muitos detratores viram na sua posição política uma contradição quando comparada com a sua filosofia. No entanto, Sartre deixou claro também que o que ele entendia por comunismo e marxismo ia muito além do que foi deixado por Marx e aplicado na União Soviética. O marxismo, para ele, tinha uma dimensão própria que havia ultrapassado as ideias de Karl Marx, como se tivesse vida e inteligência próprias.
Na literatura e na crítica literária, o filósofo procurou estabelecer vínculos com escritores que passassem a ideia da liberdade e da miséria da existência humana, cercada pela angústia da liberdade exacerbada e do não amparo por Deus ou por qualquer instituição metafísica. Sartre era materialista e ateu.
Na filosofia, o pensador francês encontrará em Nietzsche a afirmação da vida material e corpórea; em Kierkegaard, uma defesa de uma filosofia voltada para o ser humano e para a vida; em Heidegger, o início do existencialismo; e em Husserl, o método fenomenológico, que defende uma espécie de aprofundamento dos sentidos como maneira de imergir no mundo e no pensamento. Todo esse conjunto de ideias servirá de base para a formulação do existencialismo sartriano.
Acesse também: A crítica de Nietzsche à moral cristã
Existencialismo de Sartre
Antes de Sartre, o existencialismo já encontrava seus ecos nas artes, na sociedade e na filosofia heideggeriana desde o fim da Primeira Guerra Mundial. Desolados com o horror da guerra, os europeus começaram a pensar em sua situação e em sua condição enquanto seres finitos. É nesse aspecto que Heidegger identifica o ser humano como um ser-para-a-morte, o que nos levaria à angústia, pois temos consciência de nossa finitude.
O existencialismo sartriano parte das ideias de Heidegger, mas vai além, pois o filósofo francês identifica a liberdade, o abandono, a primazia da existência e o não reconhecimento de si como fatores para a angústia.
Em primeiro lugar, estamos condenados a ser livres. Isso implica nossa atitude, qualquer que seja ela, como fruto de nossa escolha, e também significa que estamos vivendo uma condenação, pois, por mais que queiramos livrar-nos de nossa liberdade, não é possível fazê-lo.
Também há a questão do abandono. O ser humano, para Sartre, está abandonado, largado no mundo, pois, ao contrário do que diz a religião e as concepções metafísicas medievais, não há um Deus que nos guie. Outro fator de angústia é a falta de essência que nos determine. Para Sartre, existência precede a essência, e “se realmente a existência precede a essência, o homem é responsável pelo que é”|3|. O ser humano tem responsabilidade total por si e, ao mesmo tempo, não tem uma essência predefinida.
Sartre critica toda a filosofia desde Platão até Kant, que tentou enquadrar o ser humano num conceito de humanidade, numa essência que precedia a existência e dava à vida humana uma forma. Sartre é contra qualquer maneira de determinismo, e o fato de a existência preceder a essência, para o filósofo, é fator de angústia.
Existência preceder a essência significa que não há algo totalizante que defina todos os espécimes humanos. Não há um conceito de humano pronto e acabado que abarque todos, indiscriminadamente. Para Sartre, as pessoas fazem-se, constroem-se, na medida em que vivem e exercem a sua liberdade, pela qual estão condenadas. Dessa maneira, não há uma essência humana, mas uma condição humana. Isso é angustiante porque tira do ser humano uma de suas certezas otimistas: a de que ele é, necessariamente, um ser dotado de características que o distinguem dos outros.
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O ser-em-si: é o que Heidegger chamou de Dasein (ser-aí). São as coisas do mundo, os fenômenos. É o modo como as coisas mostram-se, aparecem para nós. A fenomenologia de Husserl e Heidegger é importante para Sartre porque ela entra nesse primeiro aspecto: das coisas materiais e fenomênicas.
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O ser-para-si: é a consciência e o modo como ela se relaciona com o ser-em-sí. É a nossa mente, é o imaterial que reconhece o nosso corpo (material e ser-em-sí) — encontra-se em conflito ao contrastar-se com o outro ser e reconhecer que não há uma forma definida como ele. Isso nos leva à angústia.
Sartre, ao defender-se das acusações de marxistas, de que ele não teria consciência de classe (pois à primeira vista, parece que o existencialismo é individualista), e dos cristãos, por parecer demasiado pessimista e sem esperança, escreve o ensaio O existencialismo é um humanismo. Nesse texto, o filósofo defende que o ser humano faz-se por suas escolhas, mas coloca uma dimensão ética ao dizer que “escolhendo-se, ele [o homem] escolhe todos os homens”.
De fato, não há um único de nossos atos que, criando o ser humano que queremos ser, não esteja criando, simultaneamente, uma imagem do homem tal como julgamos que ele deva ser”|3|. Isso significa dizer que o ser humano, ao fazer as suas escolhas, projeta nelas a imagem que ele quer passar para a humanidade e que define, para si, o que é humanidade. Desse modo, cada escolha singular não é egoísta e individual, mesmo que prejudique a humanidade. Para aprofundar-se nessa teoria filosófica, acesse: O existencialismo em Sartre.
Principais obras de Sartre
As obras de Sartre, tanto literárias quanto filosóficas e dramatúrgicas, sempre tiveram o existencialismo como ponto de partida conceitual. Destacamos, a seguir, os seus principais escritos:
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A náusea: primeiro romance publicado de Sartre, o texto foi escrito como se fosse um diário do personagem principal. O protagonista perambula pelas ruas de uma cidade e, em suas vivências, nota coisas corriqueiras e absurdas, o que, por vezes, coloca-o de frente à questão da condição humana. Nesse livro já existem as ideias existencialistas de Sartre.
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O ser e o nada: nesse tratado filosófico, o escritor francês expõe a sua filosofia existencialista, enraizada em Kierkegaard, Heidegger e Jaspers, definindo conceitos e explicando os significados de termos corriqueiros do vocabulário existencialista. Sartre tenta explicar o mundo e a sua (des)ordem via concepção existencialista.
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O existencialismo é um humanismo: aqui há o intuito de rebater críticas de marxistas e cristãos ao mostrar que existe uma dimensão otimista do existencialismo (a liberdade) e uma dimensão coletiva e ética (a escolha individual estendida à humanidade).
Sartre e Simone de Beauvoir
O casal Sartre e Beauvoir talvez tenha sido o que mais levantou polêmicas na história da filosofia. Conheceram-se quando faziam a graduação em Filosofia na Escola Normal Superior de Paris e nunca mais se separaram, até a morte de Sartre, em 1980. As polêmicas em torno do casal centram-se no fato de que o relacionamento dos dois não era convencional. Havia um pacto de lealdade e de um relacionamento aberto, com divisão parcial da vida a dois e a aceitação de casos extraconjugais. Sartre e Simone nunca se casaram e nunca dividiram a mesma casa. Moravam no mesmo prédio, ele em seu apartamento e ela no dela. Ambos tinham amantes.
Apesar de não ser muito atraente fisicamente, Sartre possuía um charme intelectual encantador, extrovertido e bem humorado. Simone era culta, inteligente, sagaz, envolvente e bonita. Ambos tiveram vários casos, talvez ele mais que ela. Simone era bissexual e envolveu-se com diversas mulheres e com homens conhecidos, como o escritor Nelson Algren. Sartre envolveu-se com diversas mulheres, em sua maioria mais novas que ele.
O relacionamento do casal, apesar de aparentar difícil aceitação para o nosso padrão monogâmico ocidental, durou 51 anos, tendo terminado apenas com a morte de Sartre. Parecia haver uma imensa cumplicidade entre os dois. A produção intelectual de ambos também se cruza. Enquanto Sartre estudava o existencialismo e propunha uma forma de entender o ser humano como fruto da “condição humana”, Beauvoir também tomava como ponto de partida o existencialismo para teorizar o que ela chamou de “condição feminina”, no âmbito dos estudos feministas.
Créditos de imagens
[1] Moshe Milner/Commons
[2] Willy Pragher/ Commons
Notas
|1| Confira a entrevista com Claudine Monteil clicando aqui.
|2| CHAUI, M. Vida e obra. São Paulo: Abril Cultural, 1984. p. IX. (Os Pensadores).
|3| SARTRE, J. P. O existencialismo é um humanismo. São Paulo: Abril Cultural, 1984, p. 6. (Os Pensadores).
Por Francisco Porfírio
Professor de Filosofia