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O futurismo foi uma das vertentes das vanguardas artísticas do século XX. Iniciou-se como movimento na Itália, em 1909-1910, com forte tonalidade patriótica em seu manifesto, mas teve influência nas artes de outros países, como França, Rússia e Brasil. Esses artistas viam o futuro representado na velocidade do automóvel, nos avanços industriais, na eletricidade, nas grandes metrópoles, nas engrenagens dos maquinários, enfim, na nova configuração social do início do século, que para eles representava um novo mundo e um novo homem.
Glorificando a tecnologia e entendendo a aceleração dos motores e turbinas como uma libertação do passado, saudavam entusiasmadamente as novas invenções como o horizonte do futuro humano. “É mais belo um ferro elétrico do que uma escultura”, disse Giacomo Balla, um dos fundadores do movimento, assertiva que aponta para a ruptura que representava a proposta futurista.
A ideia principal que os futuristas buscavam incorporar em seu procedimento artístico era principalmente a velocidade, captando, seja nas artes plásticas, seja na literatura, esse movimento acelerado que percebiam intensificar-se ao seu redor. Nas palavras de Filippo Marinetti, outro precursor do movimento:
“O esplendor do mundo se enriqueceu com uma nova beleza: a beleza da velocidade. Um automóvel de carreira é mais belo que a Vitória de Samotrácia.”
Tópicos deste artigo
- 1 - Contexto histórico
- 2 - Principais características do futurismo
- 3 - Trechos do Manifesto Futurista
- 4 - Principais artistas
- 5 - Um Fernando Pessoa futurista
- 6 - Futurismo no Brasil
Contexto histórico
Criado no início de 1909, em Milão, na Itália, o futurismo reverberou uma euforia com as descobertas e invenções da Segunda Revolução Industrial, em curso na Europa desde meados do século XIX, e cujos avanços tecnológicos refinaram-se ao longo das décadas.
A substituição do ferro pelo aço reforçou o potencial produtivo, bem como a substituição do carvão pelo petróleo como principal recurso energético, o que permitiu a criação dos motores a combustão, presentes até hoje nos automóveis, que se popularizavam no início do século XX. Foi também nesse período, em meados de 1908, que aconteceram os primeiros voos públicos em Paris, a bordo do 14-bis. O ambiente era de grandes mudanças, de encurtamento de distâncias, de aceleração da vida cotidiana.
O movimento futurista italiano foi, em sua gênese, marcado por um nacionalismo agressivo, que levou muitos de seus integrantes, especialmente Marinetti, a um entusiasmo com a guerra e ao apoio categórico do fascismo de Benito Mussolini, fundado oficialmente em 1919.
Principais características do futurismo
- Dinamicidade;
- Contestação do sentimentalismo e consequente valorização do homem de ação;
- Enaltecimento da audácia e da revolução;
- Exaltação da vida contemporânea, com ênfase em temas de tecnologia e em novos aparatos industriais;
- Rejeição ao moralismo e ruptura com a tradição;
- Na pintura: uso de cores vibrantes e de contrastes; abstração e desmaterialização dos objetos (influência cubista); sobreposição de imagens e traços em busca de representar a ideia de movimento e velocidade;
- Na escrita: “liberdade para a palavra”; uso de onomatopeias, de versos livres, de frases fragmentadas ou em lugares inesperados, para passar a ideia de velocidade; vocabulário tecnológico; uso de exclamações e interjeições para expressar energia.
Leia também: Cubismo: conheça esta outra vanguarda artística
Trechos do Manifesto Futurista
Os movimentos de vanguarda do início do século XX foram, em sua grande maioria, iniciados oficialmente a partir da redação de manifestos. Como são vertentes artísticas que buscavam sobretudo a ruptura com a arte até então estabelecida, os artistas encontraram, nesse gênero textual, a oportunidade de esclarecer o que o movimento buscava expressar, de que maneira pretendia romper com a tradição, o que lhes era mais importante e significativo etc.
O Manifesto Futurista foi escrito pelo poeta Filippo Marinetti e tornou-se conhecido a partir de sua publicação, em 1909, no jornal francês Le Figaro. Veja alguns trechos:
“Então, com o vulto coberto pela boa lama das fábricas – empaste de escórias metálicas, de suores inúteis, de fuligens celestes -, contundidos e enfaixados os braços, mas impávidos, ditamos nossas primeiras vontades a todos os homens vivos da terra:
-
Queremos cantar o amor do perigo, o hábito da energia e da temeridade.
-
A coragem, a audácia e a rebelião serão elementos essenciais da nossa poesia.
-
Até hoje a literatura tem exaltado a imobilidade pensativa, o êxtase e o sono. Queremos exaltar o movimento agressivo, a insônia febril, a velocidade, o salto mortal, a bofetada e o murro.
-
Afirmamos que a magnificência do mundo se enriqueceu de uma beleza nova: a beleza da velocidade. Um carro de corrida adornado de grossos tubos semelhantes a serpentes de hálito explosivo… um automóvel rugidor, que parece correr sobre a metralha, é mais belo que a Vitória de Samotrácia [escultura romana da Antiguidade Clássica, aprox. 190 a.C.].
-
Queremos celebrar o homem que segura o volante, cuja haste ideal atravessa a Terra, lançada a toda velocidade no circuito de sua própria órbita.
-
O poeta deve prodigalizar-se com ardor, fausto e munificência, a fim de aumentar o entusiástico fervor dos elementos primordiais.
-
Já não há beleza senão na luta. Nenhuma obra que não tenha um caráter agressivo pode ser uma obra-prima. A poesia deve ser concebida como um violento assalto contra as forças ignotas para obrigá-las a prostrar-se ante o homem.
-
Estamos no promontório extremo dos séculos! …. Por que haveremos de olhar para trás, se queremos arrombar as misteriosas portas do Impossível? O Tempo e o Espaço morreram ontem. Vivemos já o absoluto, pois criamos a eterna velocidade onipresente.
-
Queremos glorificar a guerra – única higiene do mundo -, o militarismo, o patriotismo, o gesto destruidor dos anarquistas, as belas ideias pelas quais se morre e o desprezo da mulher.
-
Queremos destruir os museus, as bibliotecas, as academias de todo tipo, e combater o moralismo, o feminismo e toda vileza oportunista e utilitária.
-
Cantaremos as grandes multidões agitadas pelo trabalho, pelo prazer ou pela sublevação; cantaremos a maré multicor e polifônica das revoluções nas capitais modernas; cantaremos o vibrante fervor noturno dos arsenais e dos estaleiros incendiados por violentas luas elétricas: as estações insaciáveis, devoradoras de serpentes fumegantes: as fábricas suspensas das nuvens pelos contorcidos fios de suas fumaças; as pontes semelhantes a ginastas gigantes que transpõem as fumaças, cintilantes ao sol com um fulgor de facas; os navios a vapor aventurosos que farejam o horizonte, as locomotivas de amplo peito que se empertigam sobre os trilhos como enormes cavalos de aço refreados por tubos e o voo deslizante dos aeroplanos, cujas hélices se agitam ao vento como bandeiras e parecem aplaudir como uma multidão entusiasta.
[...]”
Principais artistas
- Filippo Marinetti (1876-1944), fundador do movimento; poeta, editor, jornalista e militante político.
- Giacomo Balla (1871-1958), também precursor do movimento, era pintor e escultor.
- Carlos Carrà (1881-1966), Luigi Russolo (1885-1947), Umberto Boccioni (1882-1916), todos pintores italianos que assinaram o Manifesto Futurista.
- Vladimir Maiakóvski (1893-1930), poeta e dramaturgo russo que recebeu grande influência do movimento, sendo um dos precursores do cubofuturismo russo, vertente que combinou traços do cubismo e do futurismo em suas produções.
- Fernando Pessoa (1888-1935), poeta, tradutor, ensaísta e pensador português cuja obra é marcada pelo uso de heterônimos. Um de seus heterônimos, Álvaro de Campos, teve uma marcada fase futurista.
- Almada Negreiros (1893-1970), escritor e artista plástico, pertencente à primeira geração de modernistas portugueses, foi um grande expoente do futurismo em seu país.
- Oswald de Andrade (1890-1954), poeta, dramaturgo e ensaísta brasileiro, um dos nomes centrais do modernismo nacional, foi o primeiro a mencionar o movimento futurista.
- Mário de Andrade (1893-1945), poeta, teórico, ensaísta e romancista. Rejeitou a categorização de “futurista”, mas recebeu influências diretas do movimento, especialmente em sua obra Pauliceia Desvairada (1922).
Leia também: Orfismo, a primeira fase do modernismo em Portugal
Um Fernando Pessoa futurista
Poeta de múltiplas expressões, Fernando Pessoa tem diversas vozes, cada uma com sua característica, em um sistema complexo de criação que as denomina heterônimos. Mais do que pseudônimos, cada um dos heterônimos expressava um universo próprio, um outro eu pessoano, cada qual com seu próprio estilo literário. Os mais conhecidos são Alberto Caeiro, Ricardo Reis, Álvaro de Campos e o semi-heterônimo Bernardo Soares.
Álvaro de Campos, o mais visceral e febril heterônimo pessoano, teve uma fase de composição futurista, em que o eu lírico exalta o mundo moderno, estruturando seus versos para que deem o efeito do dinamismo e velocidade das máquinas. Veja um exemplo em que as características futuristas são bem delineadas – uso de vocabulário relacionado à tecnologia, a visão do que o poeta chama de beleza desse maquinário, nunca antes vista pelos humanos; a presença de onomatopeias, de versos livres, exclamações e interjeições:
Ode Triunfal
À dolorosa luz das grandes lâmpadas eléctricas da fábrica
Tenho febre e escrevo.
Escrevo rangendo os dentes, fera para a beleza disto,
Para a beleza disto totalmente desconhecida dos antigos.
Ó rodas, ó engrenagens, r-r-r-r-r-r-r eterno!
Forte espasmo retido dos maquinismos em fúria!
Em fúria fora e dentro de mim,
Por todos os meus nervos dissecados fora,
Por todas as papilas fora de tudo com que eu sinto!
Tenho os lábios secos, ó grandes ruídos modernos,
De vos ouvir demasiadamente de perto,
E arde-me a cabeça de vos querer cantar com um excesso
De expressão de todas as minhas sensações,
Com um excesso contemporâneo de vós, ó máquinas!
Em febre e olhando os motores como a uma Natureza tropical —
Grandes trópicos humanos de ferro e fogo e força —
Canto, e canto o presente, e também o passado e o futuro,
Porque o presente é todo o passado e todo o futuro
E há Platão e Virgílio dentro das máquinas e das luzes eléctricas
Só porque houve outrora e foram humanos Virgílio e Platão,
E pedaços do Alexandre Magno do século talvez cinquenta,
Átomos que hão-de ir ter febre para o cérebro do Ésquilo do século cem,
Andam por estas correias de transmissão e por estes êmbolos e por estes volantes,
Rugindo, rangendo, ciciando, estrugindo, ferreando,
Fazendo-me um acesso de carícias ao corpo numa só carícia à alma.
Ah, poder exprimir-me todo como um motor se exprime!
Ser completo como uma máquina!
Poder ir na vida triunfante como um automóvel último-modelo!
Poder ao menos penetrar-me fisicamente de tudo isto,
Rasgar-me todo, abrir-me completamente, tornar-me passento
A todos os perfumes de óleos e calores e carvões
Desta flora estupenda, negra, artificial e insaciável!
[...]
Eia! e os rails e as casas de máquinas e a Europa!
Eia e hurrah por mim-tudo e tudo, máquinas a trabalhar, eia!
Galgar com tudo por cima de tudo! Hup-lá!
Hup-lá, hup-lá, hup-lá-hô, hup-lá!
Hé-la! He-hô! H-o-o-o-o!
Z-z-z-z-z-z-z-z-z-z-z-z!
Ah não ser eu toda a gente e toda a parte!
Londres, 1914 — Junho.
(Fernando Pessoa, em Poesia Completa de Álvaro de Campos, 2007)
Leia também: Poemas da primeira geração modernista brasileira
Futurismo no Brasil
O Modernismo brasileiro, que teve sua estreia oficial a partir da Semana de Arte Moderna de 1922, recebeu influências diretas dos movimentos das vanguardas europeias. O horizonte da ruptura com a arte tradicional foi o principal propulsor para o surgimento da arte moderna, e os artistas brasileiros vislumbraram nas vanguardas um modelo, uma fonte de inspiração para orientar o surgimento de uma nova arte nacional. E as propostas futuristas de rejeição ao passado e do culto ao progresso e ao futuro iam ao encontro do que os modernistas brasileiros buscavam.
Além disso, o movimento modernista, no Brasil, trazia em si uma ânsia pela própria modernização, uma necessidade de acompanhar a modernidade da Segunda Revolução Industrial, da qual o futurismo era o testemunho mais direto.
Os artistas Oswald de Andrade e Mário de Andrade foram influenciados pela estética futurista, embora não tenham sido estritamente defensores desse movimento. Para Oswald, como redigido em seu Manifesto Pau-Brasil (1924), o futurismo foi importante para “acertar o relógio império da literatura nacional”. Ele ainda chamou Mário de “meu poeta futurista”, em um artigo de 1921, ao que este replicou: “Não sou futurista (de Marinetti). Disse e repito-o. Tenho pontos de contato com o futurismo. Oswald de Andrade, chamando-me de futurista, errou”.
A influência futurista não foi reproduzida, portanto, mas assimilada e ressignificada. Oswald e Mário misturaram as tendências do cubismo e do futurismo em algumas de suas composições poéticas, sem deixar de firmar uma postura crítica à proposta de Marinetti, posto que a estética estrangeira não se adequava propriamente ao contexto brasileiro – até porque, ainda majoritariamente agrário, o Brasil começava lentamente a se industrializar. Não havia essa ambiência das máquinas e do avanço tecnológico como na Europa.
O poema a seguir é um exemplo da incorporação de algumas propostas futuristas nos versos de Mário de Andrade – canta a cidade de São Paulo, que à época já concentrava diversas pessoas de múltiplas origens, bem como já propagava a crença no progresso industrial; reverbera a ideia de liberdade das palavras; faz repetido uso de interjeições; canta o asfalto e o aeroplano; mas também relembra que há a lama de várzea coexistindo com o asfalto, há um tanto de arcaico convivendo com as ambições modernas. Veja:
Tu
Morrente chama esgalga,
Mais morta inda no espírito!
Espírito de fidalga,
Que vive dum bocejo entre dois galanteios
E de longe em longe uma chávena da treva bem forte!
Mulher mais longa
Que os pasmos alucinados
Das torres de São Bento!
Mulher feita de asfalto e de lamas de várzea,
Toda insultos nos olhos,
Toda convite nessa boca louca de rubores!
Costureirinha de São Paulo,
Ítalo-franco-luso-brasílico-saxônica,
Gosto dos seus crepusculares,
Crepusculares e por isso mais ardentes,
Bandeirantemente!
Lady Macbeth feita de névoa fina,
Pura neblina da manhã!
Mulher que és minha madrasta e minha mãe!
Trituração ascencional dos meus sentidos!
Risco de aeroplano entre Mogi e Paris!
Pura neblina da manhã!
Gosto dos teus desejos de crime turco
E das tuas ambições retorcidas como roubos!
Amo-te de pesadelos taciturnos,
Materialização da Canaã do meu Poe...
Never more!
Emílio de Menezes insultou a memória do meu Poe...
Oh! Incendiária dos meus aléns sonoros!
Tu és o meu gato preto!
Tu me esmagaste nas paredes do meu sonho!
Este sonho medonho!
E serás sempre, morrente chama esgalga,
Meio fidalga, meio barregã,
As alucinações crucificantes
De todas as auroras do meu jardim!
(Mário de Andrade, Pauliceia Desvairada, 1922)
Por Luiza Brandino
Professora de Literatura