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Sagarana foi o livro de estreia de Guimarães Rosa que revelou o autor como grande destaque na literatura nacional, publicado em 1946. Compêndio de nove contos longos, por vezes categorizados como novelas ou noveletas, a obra é toda situada no sertão mineiro, em esmiuçadas descrições de suas paisagens, revelando o vasto conhecimento que o autor tinha da região.
Entretanto, não se trata de uma obra regionalista. Ainda que o regional tenha papel central em sua obra, as situações e personagens desenvolvidas por Rosa vão do particular ao universal: versam sobre as relações sociais, sobre o popular e o erudito, sobre o fantástico e o mágico, sobre as raízes da sociedade brasileira.
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Análise de Sagarana
Sagarana teve uma primeira versão, intitulada Contos e enviada a um concurso literário no Rio de Janeiro em 1938, ficando o autor em segundo lugar, e ainda desconhecido do grande público. Ao longo dos anos, o autor revisou, cortou alguns contos e reescreveu outros, de modo que a obra que hoje conhecemos ficou muito diferente da primeira versão.
Foi preciso também rever o título, pois Contos era denominação muito genérica, atribuída a obras diversas. Rosa, então, opta por uma junção de palavras: saga, palavra de origem germânica que significa “conjunto de histórias ou lendas da tradição oral”, e rana, sufixo tupi que significa “à maneira de”.
Esse jogo com a linguagem, que cria e recria palavras, é uma marca estilística do autor — e, por sê-la, é uma das grandes presenças na obra, desde o próprio título. Rosa procurava romper com o automatismo da língua: a palavra literária não deve ser utilitária, mas remodelada, reconstruída para retomar sua significação poética.
A dimensão lendária e mítica das sagas mostra-se, ao longo das histórias, na presença constante da superstição, da sabedoria popular e proverbial, da ambientação fantástica e mágica. Mitos indígenas e de origem africana convivem com crendices populares, em que as aparentes “desrazões” do homem simples do sertão são apresentadas ao leitor como temática de alta literatura.
Ambientado inteiramente no sertão mineiro, a paisagem é uma das personagens principais das narrativas, ao lado do minucioso trabalho com a linguagem. Centenas de espécies de animais e plantas são descritas com precisão, e é baseado na abordagem detalhada do regional que Rosa busca atingir questões universais, como a formação da sociedade brasileira.
As nove histórias de Sagarana envolvem os temas das questões sertanejas, da fome, da violência — principalmente da violência contra a mulher —, das vinganças, da jagunçagem, de um Brasil “de dentro”, desconhecido das instituições e das leis por escrito.
As relações entre as personagens estabelecem-se com base na regra e no costume, que convivem com o mítico, com o fantástico, com o mágico, com a sabedoria popular e proverbial. Para escrever as narrativas, Rosa recolheu causos e histórias dos próprios moradores da região.
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Resumo dos contos de Sagarana
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“O burrinho pedrês”
Primeira história e a mais longa do livro, foi, segundo Rosa, inspirada em acontecimento real de sua terra natal: o afogamento de um grupo de vaqueiros num córrego cheio. O protagonista da narrativa é um burrinho já velho, calmo e contemplativo. Na falta de cavalos suficientes para os vaqueiros conduzirem uma grande boiada, o burrinho é solicitado para montaria.
Cortada por micronarrativas, é interrompida por outros causos, contados pelos boiadeiros durante a travessia: um deles queria matar outro por ter-lhe roubado a namorada, por exemplo — o que traz já à tona o cenário violento do sertão e coloca em evidência a contemplação, o próprio ato de ouvir histórias.
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“A volta do marido pródigo”
Essa narrativa possui um tom mais leve e bem-humorado do que as outras do conjunto, a começar pelo caráter paródico com a parábola cristã do filho pródigo, que logo se vê no título. É protagonizada por Laio, também chamado Lalino, personagem que tem como característica principal a astúcia, que move suas ações e impulsos.
Assim como o filho pródigo bíblico abandona a casa paterna, Laio abandona o lar em que vivia com a esposa e parte para o Rio de Janeiro, onde gasta seu dinheiro na esbórnia e na folia. Acabado o dinheiro para manter-se na capital da República, e desacostumado da maneira como viviam as mulheres da capital, Laio resolve voltar para casa, saudoso e curioso para saber como seria a reação do seu povo no arraial.
No entanto, ao contrário do filho pródigo da parábola, que é recebido com honras e alegrias, Laio é tratado com desprezo e ojeriza — especialmente de sua esposa, que, por ocasião de sua partida, amasiou-se com um espanhol.
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“Sarapalha”
Caracterizada pelo tom lúgubre e decadente, trata-se da história de dois primos, Primo Ribeiro e Primo Argemiro, que, à beira da morte, causada pela malária, deliram e revivem agruras e desencantos da vida toda. Primo Ribeiro fora, no passado, abandonado pela esposa, Luísa, e permaneceu eternamente arrependido por não a ter matado, juntamente com o amante.
De acordo com o código moral sertanejo, esse seria o correto a fazer-se — lavar a honra com sangue. Sente-se enfraquecido por saber que, por amá-la, não conseguiria matá-la. Primo Argemiro, por sua vez, nutria um amor secreto por Luísa. Desde que a mulher partira com o amante, nenhum dos dois haviam tocado no nome dela.
A proximidade com a morte traz à tona essas velhas feridas, quebrando o pacto de silêncio e a amizade entre os dois, assim que Argemiro revela a Ribeiro que sempre havia gostado de Luísa, tornando a situação ainda mais solitária.
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“Duelo”
Centrada na história de Turíbio Todo, um “seleiro de profissão [...] papudo, vagabundo, vingativo e mau”, trata do tema da vingança. Certo dia, Turíbio volta mais cedo para casa e surpreende Silvana, sua esposa, com o amante, Cassiano Gomes, ex-policial. Por saber que Cassiano era homem armado, Turíbio resolve adiar sua vingança e preparar uma tocaia para matá-lo.
No momento da emboscada, porém, Turíbio engana-se e acaba assassinando Levindo Gomes, irmão de Cassiano. O caçador, então, torna-se a caça: Cassiano busca vingar a morte de irmão, e Turíbio foge para São Paulo, onde ganha um bom montante de dinheiro.
Adoentado, Cassiano sente que sua hora se aproxima. Pede, então, a Vinte-e-Um, um capiau pobre, cujo filho Cassiano havia salvado da morte, que, quando chegado o momento, dê cabo de Turíbio. Este, ao ouvir que seu inimigo havia morrido, resolve voltar para casa. No caminho, encontra Vinte-e-Um, que o acompanha, fazendo-se amigo, até emboscá-lo no meio da mata.
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“Minha gente”
A narrativa tem início quando o narrador, que escreve em primeira pessoa e em nenhum momento identifica-se, diz ter ido passar uns dias na fazenda de seu tio Emílio, localizada no Saco do Sumidouro. Embora possua alguma familiaridade com a vida no campo, percebe-se que o narrador é homem urbano, que nota e descreve tudo com admiração estrangeira.
Logo no início do conto, é mencionada uma partida de xadrez, que o sobrinho de Emílio joga com seu amigo, Santana. É justamente o jogo de xadrez que sustentará a metáfora para as relações humanas do conto, especialmente nas esferas política e amorosa.
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“São Marcos ”
Também narrado em primeira pessoa, desta vez por um narrador cético, é uma história que pode ser caracterizada como “realismo mágico”. O tema central do conto é a feitiçaria, vista como comum pelos habitantes de Calango-Frito, local onde se passa a narrativa.
Em seu relato, o narrador sai para caçar e encontra-se com duas personagens no percurso: João Mangolô e Aurísio. O primeiro é ridicularizado e desacreditado pelo narrador, cujo discurso preconceituoso também revela o racismo enraizado na mentalidade sertaneja: “Primeiro: todo negro é cachaceiro [...] Segundo: todo negro é vagabundo [...] Terceiro: todo negro é feiticeiro” . Ofendido, Mangolô bate a porta na cara do narrador.
Na sequência, provoca Aurísio, fazendo troça com o tema da feitiçaria e da crendice, zombando também da Oração de São Marcos, tida como milagrosa e proibida, que envolvia um ritual. Após os dois encontros, o narrador entra na mata fechada e, depois de um tempo, fica cego.
Desesperado, vale-se de todos os recursos: esperar para ver se passa, gritar para que alguém o escute e ajude-o, mas nada funciona. Decide, então, apelar para a Oração de São Marcos, feita conforme o ritual mandava. Algo de sobrenatural acontece e coloca-o para correr, até parar na casa de Mangolô, que tinha amarrado um pano nos olhos do retrato do narrador, “p’ra não precisar de ver negro feio”.
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“Corpo fechado”
É a história de Manuel Fulô, um valentão de Lajinha, vilarejo onde se passa o conto. O narrador é um médico, com traços autobiográficos: muito pesquisador, interessado tomador de notas das peculiaridades da região, como era o próprio Rosa.
Na primeira parte da narrativa, o médico faz apontamentos sobre os habitantes de Lajinha, e descreve o próprio Manuel Fulô, um dos últimos valentões do local, mas que era, fisicamente, baixote, de barba rala: o fraco aparentando força.
Na segunda parte, a palavra é concedida a Manuel, contador de causos; o narrador-médico torna-se quase que apenas um ouvinte. Manuel conta de sua temporada entre os ciganos, com quem aprendeu a tratar dos animais, e apresenta uma personagem central para o conto, Toniquinho das Pedras, também chamado, entre outros nomes, Antônio curandeiro-feiticeiro.
Na terceira parte, dá-se o episódio mais dramático: Manuel gostava de contar histórias e vantagens, bancando o valentão, até que é desafiado pelo “valentão dos valentões”, Targino, que ameaçou “visitar a noiva” de Manuel.
A resolução dá-se na quarta e última parte do conto, quando Manuel, para salvar sua noiva, dá a Toniquinho das Pedras aquilo que mais prezava na vida: sua mula. Em troca, Toniquinho das Pedras, que tem “alma de pajé”, fecha o corpo de Manuel Fulô, que enfrenta Targino e mata-o com uma faquinha do tamanho de um canivete. Manuel, que até então se fazia de valente, acaba, num passe de mágica, sendo salvo.
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“Conversa de bois”
O conto começa com Manuel Timborna afirmando que os bichos conversam entre si. Timborna conta o causo ocorrido na encruzilhada de Ibiúva, depois da cava do Mata-Quatro. Por volta de 10h da manhã, um carro de boi, com o menino Tiãozinho e o carreador Agenor Soronho, leva para a vila uma carga de rapadura e o corpo do pai de Tiãozinho, que havia morrido naquele dia mais cedo.
Durante o caminho, os bois conversam entre si — suas falas intercalam-se às das personagens humanas. Soronho, assim como o pai, tratava com rudez e muita dureza o menino Tiãozinho, que passa a desejar que aquele morresse também. Ao saber disso, os bois aproveitam um momento em que Soronho cochilava, recostado no aguilhão do carro, e o assassinam.
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“A hora e a vez de Augusto Matraga”
Considerado um dos 10 melhores contos da literatura em língua portuguesa, é o último da coletânea de Sagarana. Centra-se nos temas da violência e do mandonismo. Matraga é um sujeito marcado pela violência sempre arbitrária de suas ações — um valentão, sem leis e sem regras, que nunca trabalhou e que despreza as mulheres, a esposa, a casa, e descuida dos seus, mas é socialmente respeitado, com família, propriedade e capangas.
O conto dá-se em um período pouco próspero para Matraga, que se vê com poucos préstimos políticos, endividado, em uma fase de perdas. Sua esposa, Dionora, cansada do destrato contínuo, abandona Matraga e foge com Ovídio, descrito como um homem que sabe amar, ao contrário de Matraga, que só lhe desejava o corpo, de quem se considerava dono.
Depois disso, os capangas de Matraga abandonam-no e passam a trabalhar para o major Consilva, inimigo do pai de Matraga, e que pagava melhor. Pobre e sem poder, decide matar a mulher e o amante, mas, antes, vai tirar satisfações com Consilva. Ao chegar à fazenda, Matraga é recebido por seus antigos capangas, que o surram até chegar à beira da morte e marcam-no com ferro de gado.
É encontrado por Mãe Quitéria e Pai Serapião, um casal de pretos, que lhe cuidam das feridas e salvam-lhe da morte, pois estava por um fio. Desvalido e triste, sente a necessidade de confessar seus pecados. O casal arranja-lhe a visita de um padre, que lhe aconselha “trabalhar por três” e ajudar aos outros sempre que possível, dizendo que ainda há de chegar “sua hora e sua vez”. Aí acontece a conversão de Matraga.
O desfecho do conto revela para ele uma oportunidade de ação: depois de sair, sem destino, montado em seu burrico, Matraga encontra um vilarejo açoitado por jagunços já seus conhecidos, que lá estavam para vingar a morte de um companheiro. Estando ausente o assassino, a regra da jagunçagem é matar, então, um parente dele. Um inocente, portanto, que Matraga põe-se a defender, levantando-se contra todo o bando de jagunços, momento que representa sua redenção, sua hora e vez.
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Guimarães Rosa
Considerado um dos mais extraordinários escritores da literatura brasileira, João Guimarães Rosa nasceu em 27 de junho de 1908, em Cordisburgo, interior do estado de Minas Gerais. Poliglota e autodidata, falava nove línguas, o que facilitou seu ingresso na carreira da diplomacia, profissão pela qual optou depois de formado em medicina.
Enquanto médico, exerceu a profissão atendendo nos interiores mineiros, no chamado sertão dos Campos Gerais — não o sertão da seca, mas o sertão úmido, repleto de rios e quedas d’água, paisagem muito presente em sua obra. A cavalo, atendia os pacientes em regiões rurais e urbanas, sempre munido de uma caderneta, na qual anotava espécies de animais e plantas, bem como expressões e vocabulários locais, constituindo um conhecimento enciclopédico da região, que alicerçava a construção de suas narrativas.
Rosa morreu em 19 de novembro de 1967, poucos dias depois de assumir a cadeira n. 2 da Academia Brasileira de Letras. Para saber mais sobre a biografia e produção desse importante autor brasileiro, acesse: João Guimarães Rosa.
Contexto histórico
Escrita pela primeira vez em 1937 e depois reelaborada pouco antes de sua publicação em 1946, Sagarana foi ovacionada pela crítica literária brasileira e contemplada como uma das grandes expressões da prosa nacional. À época, estava em voga a tendência do romance regionalista, cuja expressão irradiou principalmente da região Nordeste, marca da ficção da segunda geração do modernismo, e a crítica, ao primeiro olhar, enquadrou nessa vertente a literatura de Guimarães Rosa.
Outros críticos, como Antonio Candido, entretanto, já desenvolveram um outro olhar para Sagarana, diferenciando a obra daquelas do regionalismo que vigorava até então. As diferenças eram muitas: a preferência pela minúcia descritiva, pelo intenso trabalho lexical; a linguagem estilizada e caprichosa, preciosamente trabalhada; e a superação do elemento pitoresco no que diz respeito à paisagem.
O chamado romance de 30 foi sobretudo situado no sertão nordestino; a escolha do sertão mineiro, dos Campos Gerais, também foi um ponto de ruptura com a temática do que até então se escrevia.
Do ponto de vista interior à obra, sabe-se que Sagarana é ambientada em um Brasil pré-moderno. Alguns estudiosos traçam um paralelo entre esses contos e o período histórico da Primeira República (cuja estrutura carregava ainda muito do sistema político colonial) como uma representação do Brasil da época — e que seria este, aliás, o eixo central que liga todas as narrativas do livro.
A presença constante da violência, do mandonismo, dos latifúndios e do trabalho compulsório, do racismo e da ausência do Estado de direito, que, por sua vez, reforça as relações violentas e a ausência de coesão social, atravessa o conteúdo das nove narrativas.
Nem todos os críticos, contudo, endossam essa leitura, embora seja possível situar historicamente os contos com base em menções ao longo das narrativas, como o cargo de “Presidente de Estado” (em “Minha gente”) e uma dança do tempo da escravatura, que havia sido abolida, mas não há muito tempo (em “O burrinho pedrês”). Além disso, em “A hora e a vez de Augusto Matraga”, o último dos contos, um dos jagunços menciona uma revolução — a chamada Revolução de 1930, que instituiu o início da Era Vargas.
Crédito da imagem
[1] Luis War / Shutterstock
Por Luiza Brandino
Professora de Literatura