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Sigmund Freud (1856-1939), o fundador da Psicanálise, desenvolveu importantes reflexões sobre os instintos e pulsões violentas do ser humano. A partir de tais reflexões, Freud procurou discutir sobre a Grande Guerra, isto é, a Primeira Guerra Mundial, e o que ela representou para a geração de intelectuais da qual ele próprio fazia parte.
É sabido que a Primeira Guerra Mundial, que durou de 1914 a 1918, foi um dos acontecimentos mais impactantes da história da humanidade, sobretudo por inaugurar uma modalidade de guerra mais mortífera e cruenta que qualquer outra que a tenha precedido. Além disso, a indústria bélica e o mundo do trabalho fabril como um todo movimentavam-se com o objetivo de “alimentar” a dinâmica da guerra, untar as suas engrenagens. A utilização de armas químicas, como os gases tóxicos, que, quando utilizados, matavam milhares de soldados instantaneamente, também contribuiu para assinalar o clima catastrófico do início do século XX.
Pois bem, no fim do século XIX, Freud e seu círculo de psiquiatras, no qual se encontravam nomes como os de Carl Jung e Otto Ranke, procuraram não apenas desenvolver métodos clínicos para o tratamento de patologias psíquicas, mas também elaborar teses que explicassem as formas de organização civilizadas e o funcionamento da sociedade. Esse conhecimento possibilitou a Freud desferir uma série de críticas às grandes “bandeiras” da modernidade, como o racionalismo, o nacionalismo e o progresso. A aplicação da razão e do conhecimento científico na construção de tecnologia mortífera, na preparação do aniquilamento de milhões de pessoas, revelava, para Freud, o quão dissimulada era a civilização moderna e mais ainda o era o Estado Nacional que se formara no século XIX.
A partir do ano de 1915, quando a guerra já estava no auge, Freud escreveu o ensaio “Considerações atuais sobre a Guerra e a Morte”, no qual apresentou sua análise sobre o evento. Freud tinha em mente o II Reich alemão, um Estado burocrático e militarizado que destinou grande parte de sua modernização tecnológica à indústria bélica. Sua crítica intentava dissecar os meandros do que ele qualificou como “hipocrisia” do Estado Civilizado. O Estado Civilizado seria hipócrita por “domesticar” os cidadãos, infundindo sobre eles regras de conduta e reprimindo as suas pulsões violentas, e ao mesmo tempo monopolizar o uso da violência, tornando-se um Estado Combatente, que mobilizava milhões de indivíduos não para a Guerra, mas para a Morte. A guerra iniciada em 1914 trazia para Freud um cenário de calamidade:
“A guerra, em que não queríamos acreditar, estalou e trouxe consigo a decepção. Não só é mais sangrenta e mais mortífera do que todas as guerras passadas, por causa do aperfeiçoamento das armas de ataque e de defesa, mas, pelo menos, tão cruel, exasperada e brutal como qualquer uma delas. Infringe todas as restrições a que os povos se obrigaram em tempos de paz – o chamado Direito Internacional –, não reconhece nem os privilégios do ferido e do médico, nem a diferença entre o núcleo combatente e o pacífico da população, e viola o direito da propriedade. Derruba, com cega cólera, tudo o que lhe aparece pela frente, como se depois dela já não houvesse de existir nenhum futuro e nenhuma paz entre os homens. Desfaz todos os laços da solidariedade entre os povos combatentes e ameaça deixar atrás de si uma exasperação que, durante longo tempo, impossibilitará o reatamento de tais laços”. [1]
Após o fim da guerra, em 1918, Freud ainda se debruçou exaustivamente sobre esse tema e continuou dialogando com outros intelectuais, com vistas a compreender o fenômeno da Primeira Guerra Mundial. Em carta endereçada ao físico Alberto Einstein, Freud disse:
“A partir da nossa mitológica doutrina das pulsões, achamos facilmente uma fórmula que contém os meios indiretos de combater a guerra. Se a disposição para a guerra for um produto da pulsão de destruição, o mais fácil será apelar para o antagonista desta pulsão, para o Eros. Tudo o que estabelecer laços afetivos entre os homens deve atuar contra a guerra. Estes laços podem ser de dois tipos. Primeiro, os vínculos análogos aos que nos ligam ao objeto do amor, embora sem objetivos sexuais. A psicanálise não precisa de se envergonhar, quando aqui fala de amor, pois a religião diz o mesmo: 'Ama o teu próximo como a ti mesmo.' Isto é fácil de exigir, mas difícil de realizar. O outro tipo de laço afetivo é o que se leva a cabo por identificação. Tudo o que estabelece importantes elementos comuns entre os homens desperta tais sentimentos de comunidade, identificações. Neles se baseia, em grande parte, a estrutura da sociedade humana.” [2]
Vê-se que, já em 1932, via-se no horizonte o despontar da continuação da guerra de 1914 – que viria a culminar na Segunda Guerra –, e a preocupação de Freud se detinha na questão da pulsão destrutiva do ser humano, que crescia ferozmente com os regimes totalitários, cujo contraponto só poderia ser erigido, segundo ele, pelo seu oposto: o Eros, ou a pulsão do “amor construtivo”. Freud morreu em 1939, ano em que começou o segundo conflito mundial.
NOTAS:
[1]: Freud, Sigmund. Escritos sobre a Guerra e a Morte. LusoSofia: Covilhã, 2009. p. 8.
[2]: Idem, p. 46.
Por Me. Cláudio Fernandes