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Desde muito cedo, logo nos primeiros anos de nossa vida escolar, entramos em contato com a língua portuguesa e sua gramática, compêndio de regras (e algumas exceções) sobre o funcionamento da língua. Quando estudamos as classes gramaticais, estudamos os pronomes, que sabemos ser uma classe de palavras capaz de substituir, referenciar ou qualificar um nome na oração.
Contudo, nem sempre aprendemos sobre a versatilidade dos pronomes na escola. Sim, os pronomes podem surgir de maneira diferente em uma oração — daí a expressão “versatilidade” —, com sua carga semântica alterada, isto é, com significação diferente daquela que lhe é usualmente atribuída. Em um discurso, geralmente duas pessoas estão determinadas: eu (a pessoa que corresponde ao falante) e tu (a pessoa correspondente ao falante). Há também uma terceira pessoa, esta indeterminada, que aponta para outra pessoa ou coisa integrante da relação comunicativa.
Para entender mais sobre a versatilidade dos pronomes, principalmente dos pronomes de tratamento, é importante evidenciar alguns elementos da comunicação e suas funções dentro do discurso. Observe:
Elocutor: a pessoa que fala;
Alocutor: a pessoa com quem se fala,
Delocutor: a pessoa de quem se fala.
Observadas as diferenças, acompanhe alguns exemplos de versatilidade pronominal em casos pontuais da língua portuguesa:
Um “eu” que expressa outra pessoa:
“O meu amor tem um jeito manso que é só seu
E que me deixa louca quando me beija a boca
A minha pele toda fica arrepiada
E me beija com calma e fundo
Até minh'alma se sentir beijada (...)”.
Você leu no exemplo acima um fragmento da canção O meu amor, de autoria de Chico Buarque, uma demonstração clara de que o eu está expressando outra pessoa. Os pronomes possessivos e oblíquos em destaque, apesar de estarem referenciando uma possível primeira pessoa do discurso, não dizem respeito à pessoa que fala, são, portanto, pronomes delocutivos. Esse fenômeno acontece bastante nos textos que adotam a linguagem literária, nos quais está presente o chamado eu lírico.
Quando "ele" sou eu:
“Se você se comportar, mamãe vai levar você para passear no parque de diversões”.
Há alguns casos em que o “ele” deixa de referenciar-se a uma terceira pessoa para tornar-se um pronome elocutivo, ou seja, nesses casos, o pronome ele passa para o lugar de primeira pessoa do discurso, fazendo assim referência à própria pessoa que fala. No caso da frase que ilustra essa ocorrência, fica claro que uma mãe está falando ao filho, e a palavra “mamãe” corresponde ao pronome “ela” no discurso.
O nós que não nos inclui:
“Como estamos, sr. João? Passamos bem a noite?”
A frase acima poderia ter sido dita por um médico que visita o paciente em seu quarto logo pela manhã. Fica claro que, apesar de empregar a primeira pessoa do plural (nós), o médico não está incluso no próprio discurso, mostrando assim a opção pelo uso de um pronome alocutivo, que está fazendo referência à pessoa com quem se fala.
Quem é "você"?
“Você passa anos estudando, (você) vai para a universidade, (você) vai para o mestrado, (você vai para o) doutorado, mas você não consegue uma boa colocação no mercado de trabalho... Que injustiça!”
Você conseguiu identificar quem é o “você” no discurso acima? Será que o elocutor está se referindo a uma segunda pessoa? Embora o pronome “você” tenha essa função no discurso, nesse caso específico ele assume o papel de primeira pessoa, tornando-se um pronome elocutivo. Essa opção foi tomada para que o leitor ou o interlocutor possa se sentir como o elocutor se sentiu na situação descrita.
“Ele” é 2ª pessoa:
O amigo, ao ver a amiga solitária, pergunta?
“Posso te fazer companhia?”
Ao que ela responde:
“Ele ainda pergunta!”.
Esse “ele” passou a ser, de acordo com o contexto da frase, um pronome de tratamento de 2ª pessoa, pois em vez de a amiga responder “Você ainda pergunta?”, ela diz, como quem se mostra surpresa com o pedido, “Ele ainda pergunta!”. Portanto, o “ele” foi deslocado de sua significação habitual, fazendo as vezes do tu ou do você.
Por Luana Castro
Graduada em Letras