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Uma das principais características dos movimentos totalitários da primeira metade do século XX, como o fascismo, o stalinismo e o nazismo, foi a construção de um emaranhado simbólico capaz de perverter as consciências individuais e moldá-las às diretrizes do partido e do líder que o comandava. Nesse sentido, todo e qualquer veículo simbólico, desde a linguagem do cotidiano até vestimentas, bandeiras, gestos, corte de cabelo etc., era usado como tentativa de submeter o individual ao corpo coletivo, de construir um “organismo psicossocial” coordenável pelo poder totalitário. O intelectual judeu-alemão Victor Klemperer (1881-1960) foi um dos principais analistas desse fenômeno, ao qual deu o nome de “Linguagem do Terceiro Reich”.
Klemperer refletiu, especificamente, sobre a atuação desse fenômeno na Alemanha. Quando o nazismo ascendeu ao poder, em 1933, Victor Klemperer era um distinto pesquisador da língua latina, respeitado internacionalmente. Em 1935, ele foi proibido de lecionar, por ser judeu. Depois de 1938, quando a perseguição aos judeus tornou-se abertamente agressiva na Alemanha, Klemperer foi privado de usufruir do serviço de bibliotecas e obrigado a morar em guetos judaicos e a trabalhar em campos de trabalho forçado (fato que o “livrou” de ser enviado aos campos de extermínio). À medida que o poder do Terceiro Reich foi adentrando todas as esferas da vida social na Alemanha, Klemperer foi percebendo a destruição que isso provocava no íntimo das pessoas.
Os rituais de cumprimento, as saudações gestuais ao “Füher” (líder, em alemão), a padronização de expressões linguísticas e a adoração praticamente religiosa à figura de Hitler deixaram Klemperer impactado. Como filólogo e grande conhecedor de linguagem, esse autor percebia o efeito psicológico devastador do nazismo. O uso de símbolos, como os dois “S” em forma de raio no uniforme das SS (esquadrão especial encarregado dos campos de concentração e extermínio), bem como a Suástica, símbolo máximo do partido nazista, impressionava os cidadãos de forma tão avassaladora que seu comportamento era comparável ao de fiéis religiosos. Havia um princípio de “perversão metafísica” no Terceiro Reich, pois Hitler conseguiu tornar-se uma figura “salvacionista”, um Messias, um “Deus terreno”.
A sigla que Klemper elaborou para denominar a Linguagem do Terceiro Reich foi LTI, que é a abreviação de Lingua Tertii Imperii (A língua do Terceiro Império, em latim). Um dos exemplos mais chocantes dessa linguagem, para os judeus, diz Klemperer, foi quando os nazistas passaram a identificá-los com a Estrela de Davi, o símbolo hebraico por excelência. Isso passou a acontecer a partir de 1941. Ao responder à pergunta “...qual foi o pior dia para os judeus nos doze anos do inferno nazista?”, Klemperer disse:
“Todos damos a mesma resposta: 19 de setembro de 1941. Nesse dia tornou-se obrigatório o uso da estrela de David, de seis pontas, aquele trapo amarelo que até hoje simboliza peste e quarentena. Na Idade Média, era a cor que identificava os judeus, mas é também a cor da inveja, da bílis com sangue, a cor do mal a ser evitado; esse trapo traz a inscrição em negro: JUDEU. A palavra, emoldurada pelas linhas dos dois triângulos, parcialmente sobrepostos, está escrita em letras grossas, maiúsculas. Isoladas e com os traços horizontais realçados, imitam caracteres hebraicos.” [1]
A associação de um símbolo religioso com o mal, com o repulsivo, e a sua internalização na consciência dos indivíduos foram alguns dos muitos ardis da linguagem totalitária.
NOTAS
[1] KLEMPERER, Victor. LTI: a linguagem no Terceiro Reich. Rio de Janeiro: Contraponto, 2009. p. 261.
Por Me. Cláudio Fernandes