Na leitura do seguinte poema:
Canção
Pus o meu sonho num navio
e o navio em cima do mar;
– depois, abri o mar com as mãos,
para o meu sonho naufragar.
Minhas mãos ainda estão molhadas
do azul das ondas entreabertas,
e a cor que escorre de meus dedos
colore as areias desertas.
O vento vem vindo de longe,
a noite se curva de frio;
debaixo da água vai morrendo
meu sonho, dentro de um navio…
Chorarei quanto for preciso,
para fazer com que o mar cresça,
e o meu navio chegue ao fundo
e o meu sonho desapareça.
Depois, tudo estará perfeito;
praia lisa, águas ordenadas,
meus olhos secos como pedras
e as minhas duas mãos quebradas.
(Cecília Meireles)
Podemos notar que os versos que compõem o poema são encerrados de duas maneiras diferentes. Em uma dessas formas, a pausa final coincide com uma pausa possível de ser realizada em nível sintático. Veja:
“Pus o meu sonho no navio”
“O vento vem vindo de longe,”
“a noite se curva de frio;”
Perceba que todos os componentes sintáticos permanecem no mesmo verso.
O outro recurso de encerramento dos versos, no entanto, realiza uma discordância com as regras sintáticas, separando palavras que se unem em um mesmo grupo fônico, como em:
“a cor que escorre de meus dedos
colore as areias desertas.”
Veja a separação do sujeito e do predicado, ou seja, o primeiro verso encerra-se no seguinte.
Observe mais um exemplo:
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“debaixo da água vai morrendo
meu sonho, dentro de um navio…”
É possível perceber nitidamente, nesses dois versos, a intenção da poeta em realçar o sujeito “meu sonho” quando realiza essa quebra sintática, separando-o de seu predicado.
Esse recurso estilístico é conhecido como cavalgamento (ou, em francês, enjambement), que consiste em terminar um verso em discordância flagrante com a sintaxe, com a intenção de realçar as palavras que foram separadas. Dessa forma, há uma união sintática entre um verso e outro ao separar palavras unidas em um mesmo grupo fônico.
Veja mais alguns poemas que apresentam esse recurso estilístico:
Inscrição na Areia
O meu amor não tem
importância nenhuma.
Não tem o peso nem
de uma rosa de espuma!
Desfolha-se por quem?
Para quem se perfuma?
O meu amor não tem
importância nenhuma.
(Cecília Meireles)
Nel mezzo del camim...
Cheguei. Chegaste. Vinhas fatigada
E triste, e triste e fatigado eu vinha.
Tinhas a alma de sonhos povoada,
E alma de sonhos povoada eu tinha...
E paramos de súbito na estrada
Da vida: longos anos, presa à minha
A tua mão, a vista deslumbrada
Tive da luz que teu olhar continha.
Hoje segues de novo... Na partida
Nem o pranto os teus olhos umedece,
Nem te comove a dor da despedida.
E eu, solitário, volto a face, e tremo,
Vendo o teu vulto que desaparece
Na extrema curva do caminho extremo.
(Olavo Bilac)
Por Mariana Rigonatto
Graduada em Letras