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A história da escravidão no Brasil e nas demais colônias em que existiu essa instituição não foi caracterizada por uma aceitação passiva dos africanos em relação ao cativeiro. A história da escravidão nas Américas foi marcada por uma resistência escrava ativa e pela criação de formas de sociabilidade, manifestadas através de danças, cantos, religiões ou mesmo reações ao cativeiro, como ataques aos senhores, sabotagem da produção, defesa das famílias constituídas nas fazendas e fugas.
Nesse último caso, os historiadores chegaram a dividi-las em duas formas. A primeira seriam as fugas de ruptura, em que os escravos fugiam das fazendas e engenhos em busca da liberdade, criando quilombos e rompendo com o escravismo. Porém, havia ainda as fugas por reivindicação, em que os escravos fugiam das fazendas, mas sem o objetivo de conseguirem a liberdade. Muitas dessas fugas eram para que o escravo não fosse vendido ou mesmo pelo motivo contrário, que seu senhor se desfizesse dele, pois não tinha interesse em ficar sob seu controle. Outros ainda buscavam conseguir um descanso nas duras rotinas de trabalho.
Houve ainda fugas em que os escravos tinham o interesse em mudar as condições de trabalho nos engenhos, pretendendo assim alterar os processos de trabalho e conseguirem uma margem maior de decisão sobre as formas de procederem durante a lida.
Um exemplo pode ser encontrado no sul da Bahia, no final do século XVIII. Por volta de 1789, no Engenho de Santana de Ilhéus, os escravos crioulos (nascidos no Brasil) paralisaram o trabalho, mataram o feitor, pegaram as ferramentas do engenho e refugiaram-se nas matas do entorno da região. O objetivo deles não era serem libertos da condição de escravos, mas buscar maior liberdade na escravidão. Ao menos é isso que foi sugerido pelo documento criado pelos escravos fugidos e que foi encaminhado ao seu senhor, referenciado como “Tratado proposto a Manuel da Silva Ferreira pelos seus escravos durante o tempo em que se conservaram levantados”. [1]
Nesse documento os escravos afirmaram que não queriam a guerra, e sim a paz. Caso o senhor concordasse com eles na paz, esta deveria ser construída em conformidade com o que eles exigiam.
Dentre as exigências dos escravos de Manuel da Silva Ferreira havia o pedido de destinação das sextas e dos sábados das semanas para que os escravos pudessem trabalhar para si próprios, pedindo ainda que o senhor destinasse a eles “rede, tarrafa e canoas”, além de poderem plantar o “arroz onde quisermos, e em qualquer brejo, sem que para isso peçamos licença, e poderemos cada um tirar jacarandás ou qualquer pau sem darmos parte para isso”.
Os trabalhos destinados aos próprios escravos, além de garantirem uma suplementação na alimentação, servia em muitos casos como uma forma de se angariar recursos para comprarem posteriormente uma alforria, conseguidos com a comercialização dos produtos. Ainda no que se refere a essa comercialização é interessante notar outra reivindicação no mesmo documento, a de que o senhor deveria fazer uma “barca grande para quando for para Bahia nós metermos as nossas cargas para não pegarmos fretes”. O objetivo era utilizar de um meio de transporte do senhor para que pudessem comercializar o que haviam produzido, sem que pudessem ter custos adicionais.
Os escravos do Engenho de Santana de Ilhéus lutavam ainda pela alteração nos processos de trabalho, quando exigiam que “em cada uma caldeira há de haver botador de fogo, e em cada terno de faixas o mesmo, e no dia de sábado há de haver remediavelmente peija [paralisação] no Engenho.” As reivindicações apresentadas demonstravam um conhecimento pelos escravos do trabalho que executavam e, decorrente disso, a apresentação de outra forma de executá-los, indicando uma tentativa de criar novos ritmos de trabalho, menos estafantes.
No que se refere aos escravos africanos, os fugidos do engenho buscavam se diferenciar deles, restringindo alguns afazeres, como “fazer camboas e mariscar”, aos escravos nascidos na África. O documento de reivindicação terminava afirmando que poderiam “brincar, folgar e cantar em todos os tempos que quisermos sem que nos impeça e nem seja preciso licença”. Caso o senhor aceitasse as exigências e concedesse a eles estarem sempre em posse de suas ferramentas, os escravos voltariam ao trabalho.
Manuel da Silva Ferreira fingiu aceitar as reivindicações. Um senhor não poderia aceitar tamanha afronta de suas propriedades humanas. Os líderes do movimento foram presos, encerrando a luta naquele momento no engenho. Apesar da derrota, o documento e a luta dos escravos do Engenho de Santana de Ilhéus demonstraram uma ação ativa durante o cativeiro, além de um conhecimento do processo de trabalho e o interesse de alterá-lo, propondo formas concretas para isso. Os escravos modernos não foram peças passivas nas mãos de seus senhores.
Nota
[1] REIS, João José, SILVA, Eduardo. Negociação e conflito – a resistência negra no Brasil escravista. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 1989, p.123. As demais citações do documento são todas retiradas desse local.
Por Tales Pinto
Mestre em História