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Narciso
Dentro de mim me quis eu ver. Tremia,
Dobrado em dois sobre o meu próprio poço...
Ah, que terrível face e que arcabouço
Este meu corpo lânguido escondia!
Ó boca tumular, cerrada e fria,
Cujo silêncio esfíngico bem ouço!
Ó lindos olhos sôfregos, de moço,
Numa fronte a suar melancolia!
Assim me desejei nestas imagens.
Meus poemas requintados e selvagens,
O meu Desejo os sulca de vermelho:
Que eu vivo à espera dessa noite estranha,
Noite de amor em que me goze e tenha,
...Lá no fundo do poço em que me espelho!
José Régio
O poema que você leu agora é de autoria do escritor português José Régio, um dos maiores expoentes da literatura portuguesa, fundador e diretor da aclamada Revista Presença, publicação literária de maior êxito durante os anos do modernismo em Portugal. A folha de arte e crítica começou a circular no dia 10 de março de 1927, difundindo os ideais do Presencismo, movimento estético que marcou a segunda fase do modernismo português.
Sucessora da Revista Orpheu, fundada pelos escritores Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro e Almada Negreiros (entre outros) em 1915, a Revista Presença tinha como principal objetivo inserir Portugal no contexto cultural da Europa moderna, divulgando no país os principais nomes das literaturas estrangeiras que até então eram desconhecidos ou negligenciados. Foi, dessa maneira, um dos mais influentes e longevos órgãos literários de Portugal, combatendo o provincianismo do panorama cultural português ao possibilitar o intercâmbio cultural e estético com outras literaturas.
Originalidade Verdadeira e Originalidade Falseada
Em Arte, é vivo tudo o que é original. É original tudo o que provém da parte mais virgem, mais verdadeira e mais íntima duma personalidade artística. A primeira condição duma obra viva é pois ter uma personalidade e obedecer-lhe. Ora como o que personaliza um artista é, ao menos superficialmente, o que o diferencia dos demais, (artistas ou não) certa sinonímia nasceu entre o adjectivo original e muitos outros, ao menos superficialmente aparentados; por exemplo: o adjectivoexcêntrico, estranho, extravagante, bizarro... Eis como é falsa toda a originalidade calculada e astuciosa.
Eis como também pertence à literatura morta aquela em que um autor pretende ser original sem personalidade própria. A excentricidade, a extravagância e a bizarria podem ser poderosas - mas só quando naturais a um dado temperamento artístico. Sobre outras qualidades, o produto desses temperamentos terá o encanto do raro e do imprevisto. Afectadas, semelhantes qualidades não passarão dum truque literário.
(José Régio, in 'Presença, Folha de Arte e Crítica, primeira edição, 10/03/1927)
Ao contrário do Orfismo (cujos ideais assemelham-se em muito com a primeira fase do modernismo brasileiro), que combatia o passadismo e o tradicionalismo da estética literária vigente, olhando para o homem e sua condição no mundo moderno, o Presencismo criou uma literatura introspectiva e intimista, muito próxima das teorias do inconsciente humano defendidas por Sigmund Freud. Proust e Dostoiévski foram as principais influências dos escritores presencistas, nomes que imprimiram em suas obras um forte traço psicologizante. Foram essas características que fizeram com que o Presencismo fosse alvo de duras críticas, críticas que acusavam seus representantes de produzir uma literatura alienada, alheia às sérias crises políticas e econômicas enfrentadas pela Europa no final da segunda década do século XX.
Identidade
Matei a lua e o luar difuso.
Quero os versos de ferro e de cimento.
E em vez de rimas, uso
As consonâncias que há no sofrimento.
Universal e aberto, o meu instinto acode
A todo o coração que se debate aflito.
E luta como sabe e como pode:
Dá beleza e sentido a cada grito.
Mas como as inscrições nas penedias
Têm maior duração,
Gasto as horas e os dias
A endurecer a forma da emoção.
Miguel Torga
Entre os principais autores do período destacam-se José Régio, Miguel Torga, João Gaspar Simões, Adolfo Casais Monteiro e Branquinho da Fonseca, escritores envolvidos com o programa estético do Presencismo que tinha como um de seus ideais interrogar o sentido da existência humana, longe dos academicismos e do programa ideologizante difundido pelo Orfismo. Segundo o manifesto do grupo, escrito por José Régio (considerado o grande teórico entre os presencistas), “a finalidade da Arte é apenas produzir-nos esta emoção tão particular, tão misteriosa, e talvez tão complexa: a emoção estética”. Embora reconhecessem a importância do Orfismo, os escritores presencistas buscavam uma poesia que primasse pelo individual, associando-a a uma concepção de arte metafísica e abstrata na qual a subjetividade fosse mais importante do que a verdade objetiva ou racional.
O Presencismo vigorou como a mais importante corrente literária da literatura portuguesa até o ano de 1940, quando foi publicada a última edição da Revista Presença. O grande mérito dos escritores presencistas certamente foi o de divulgar as conquistas da primeira geração modernista — tal qual fizeram os representantes da segunda geração do modernismo brasileiro —, consolidando, dessa maneira, uma nova estética literária e abrindo as portas para o movimento que viria a seguir, o Neorrealismo, terceira fase do modernismo português que foi fortemente influenciada pelo romance regionalista brasileiro.
Por Luana Castro
Graduada em Letras