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As Coisas Secretas da Alma
Em todas as almas há coisas secretas cujo segredo é guardado até a morte delas. E são guardadas, mesmo nos momentos mais sinceros, quando nos abismos nos expomos, todos doloridos, num lance de angústia, em face dos amigos mais queridos - porque as palavras que as poderiam traduzir seriam ridículas, mesquinhas, incompreensíveis ao mais perspicaz. Estas coisas são materialmente impossíveis de serem ditas. A própria Natureza as encerrou - não permitindo que a garganta humana pudesse arranjar sons para as exprimir - apenas sons para as caricaturar. E como essas ideias-entranha são as coisas que mais estimamos, falta-nos sempre a coragem de as caricaturar. Daqui os “isolados” que todos nós, os homens, somos. Duas almas que se compreendam inteiramente, que se conheçam, que saibam mutuamente tudo quanto nelas vive - não existem. Nem poderiam existir. No dia em que se compreendessem totalmente - ó ideal dos amorosos! - eu tenho a certeza que se fundiriam numa só. E os corpos morreriam.
Mário de Sá-Carneiro, in 'Cartas a Fernando Pessoa'
O fragmento que você leu acima é parte de uma das várias cartas trocadas entre Mário de Sá-Carneiro e Fernando Pessoa, dois dos mais importantes poetas da língua portuguesa e os maiores representantes do modernismo em Portugal. As cartas, meio pelo qual os dois grandes amigos comunicaram-se durante os anos de isolamento de Mário na França, foram publicadas postumamente em 1958, vide seu riquíssimo teor literário. Por intermédio das correspondências, podemos notar um poeta angustiado e atormentado pela ideia recorrente de suicídio, violência que cometeria aos trinta e seis anos de idade.
Mário de Sá-Carneiro nasceu em Lisboa, Portugal, no dia 19 de maio de 1890. Aos dois anos de idade, perdeu a mãe, e a dor da ausência materna acompanhou-o ao longo de sua breve vida. Após a morte da esposa, o pai de Mário, um militar da alta burguesia, entregou o filho aos cuidados dos avós e seguiu para uma vida de viagens, sempre custeando os estudos daquele que viria a ser uma das maiores vozes poéticas de Portugal. Aos vinte e um anos, Mário transferiu-se para Coimbra, onde ingressou na tradicional Faculdade de Direito, não tendo completado sequer o primeiro ano da graduação. Foi nessa época, o ano era 1912, que conheceu aquele que seria seu melhor amigo e confidente, Fernando Pessoa.
As correspondências trocadas com o amigo Fernando Pessoa foram publicadas trinta e dois anos após sua morte
Em 1915, ao lado de Fernando Pessoa, Raul Leal, Luís de Montalvor, Almada Negreiros e o brasileiro Ronald de Carvalho, ajudou a fundar a revista Orpheu, primeira publicação a divulgar os ideais modernistas e as tendências culturais que circulavam na Europa no início do século XX. A revista não passou do segundo número, mas cumpriu o intuito de escandalizar a burguesia acostumada ao cânone literário vigente até os primeiros anos do século XX. Mário, por influência de Pessoa, aderiu a correntes de vanguarda, como o interseccionismo e o futurismo, exprimindo em sua poesia toda a sua dificuldade em assumir-se como adulto e de transpor as barreiras entre a realidade e a idealidade.
Em seus poemas transbordam a melancolia, o narcisismo, a frustração e o sentimento de abandono, esse último relacionado à morte prematura da mãe, fato que o marcou profundamente. Em Paris, onde iniciara os estudos na Universidade de Sorbonne, sua vida ganhou contornos dramáticos, tendo entregado-se a uma vida desregrada, fato que agravou sua já frágil saúde emocional. Abandonou os estudos e nesse período intensificou o contato com Fernando Pessoa, sempre relatando ao amigo o desejo de suicídio em cartas permeadas por uma linguagem irônica e autossarcástica, nas quais é possível observar uma intensa oscilação de humor do poeta de personalidade sensível e egoica.
No dia 26 de abril de 1926, hospedado em um hotel na cidade francesa de Nice, Mário de Sá-Carneiro cumpriu seu intento, dando cabo de uma existência marcada pelo sofrimento e pela angústia ao consumir vários frascos de estricnina. Dias antes, já atormentado pela ideia suicida, escreveu aquela que foi a sua última carta para Fernando Pessoa:
Meu querido Amigo.
A menos de um milagre na próxima segunda-feira, 3 (ou mesmo na véspera), o seu Mário de Sá-Carneiro tomará uma forte dose de estricnina e desaparecerá deste mundo. É assim tal e qual – mas custa-me tanto a escrever esta carta pelo ridículo que sempre encontrei nas “cartas de despedida”... Não vale a pena lastimar-me, meu querido Fernando: afinal tenho o que quero: o que tanto sempre quis – e eu, em verdade, já não fazia nada por aqui... Já dera o que tinha a dar. Eu não me mato por coisa nenhuma: eu mato-me porque me coloquei pelas circunstâncias – ou melhor: fui colocado por elas, numa áurea temeridade – numa situação para a qual, a meus olhos, não há outra saída. Antes assim. É a única maneira de fazer o que devo fazer. Vivo há quinze dias uma vida como sempre sonhei: tive tudo durante eles: realizada a parte sexual, enfim, da minha obra – vivido o histerismo do seu ópio, as luas zebradas, os mosqueiros roxos da sua Ilusão. Podia ser feliz mais tempo, tudo me corre, psicologicamente, às mil maravilhas, mas não tenho dinheiro. […]
Mário de Sá-Carneiro, carta para Fernando Pessoa, 31 de Março de 1916.
Sua obra literária é composta pelos livros Princípio (novelas - 1912), Memórias de Paris (coletânea de memórias - 1913), A Confissão de Lúcio (romance - 1914), Dispersão (poesia - 1914) e o último publicado em vida, Céu em Fogo (novelas – 1915). As cartas trocadas com Fernando Pessoa foram compiladas e publicadas em dois volumes nos anos de 1958 e 1959, tornando-se objeto de análise para os estudiosos da literatura. Para que você conheça um pouco mais da poesia de Mário de Sá-Carneiro, o Brasil Escola apresenta para você um dos mais conhecidos poemas do escritor, cujo niilismo e desencanto renderam à literatura uma das mais belas contribuições. Boa leitura!
Loucura... é uma das novelas publicadas no livro Princípio. A Confissão de Lúcio é um conto que integra o livro homônimo de Mário de Sá-Carneiro
Dispersão Perdi-me dentro de mim Não sinto o espaço que encerro |
A sua boca doirada Paris, maio de 1913. |
Por Luana Castro
Graduada em Letras