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É sabido que a Revolução Francesa (1789-1799) tornou-se o marco do que se convencionou denominar, a partir do século XIX, de “Idade Contemporânea”. Esse acontecimento tornou-se icônico por vários motivos, entre eles: 1) ter mudado o conceito de “revolução”, que antes possuía um teor semântico “conservador”, indicando a permanência da estrutura tradicional do poder (derivado da terminologia astronômica, isto é, revolução é mesmo que translação, o tempo que a Terra demora para completar o movimento em torno do Sol.), mas que passou a assumir um sentido de transformação radical das estruturas políticas; 2) ter alçado a burguesia à condição de grupo social com legitimidade política efetiva.
A radicalidade da Revolução Francesa tornou-se mais veemente na época da chamada Convenção Nacional, em que predominou a participação dos jacobinos no processo de instituição do regime revolucionário. Os discursos jacobinos na Revolução Francesa, sobretudo os de Maximilian de Robespierre, tiveram um papel crucial no processo de incitação e organização das massas de sans culottes (os chamados “sem calções”, pessoas sem vínculo com a aristocracia tradicional). Oradores como Robespierre conseguiram canalizar a violência revolucionária e transformá-la na “máquina de terror” que se fez atuante a partir do ano de 1793, sobretudo a partir da execução do rei Luís XVI.
Em dezembro de 1792, Robespierre procurava assentar a fundação da República por meio de um governo revolucionário orientado pela instituição do “Terror”. O terror revolucionário era ressaltado pelo orador, que se via como a encarnação da “vontade do povo”, do conjunto de cidadãos que, ao contrário do que ocorria no regime absolutista, viam-se como o próprio corpo do Estado, da Nação. Para que o “terror” fosse aplicado e “garantisse os interesses da Revolução”, era necessário convencer os membros da Convenção a apoiarem um Estado forte, capaz de reprimir qualquer tentativa de impedimento do processo revolucionário, fazendo-se entender que aqueles que estivessem contra a revolução estariam contra o povo francês.
Em 28 de dezembro de 1792, Robespierre discursou na tribuna e disse aos cidadãos, entendidos como “fundadores da República”:
“Fundadores da República, segundo estes princípios, vocês podiam julgar, há muito tempo, na alma e na consciência, o tirano do povo francês. Qual a razão de um novo adiamento? Vocês gostariam de anexar novas provas contra o acusado? Vocês querem ouvir testemunhas? Esta ideia ainda não entrou na cabeça de nenhum de nós. Vocês duvidariam daquilo que a nação acredita fortemente. Vocês seriam estrangeiros à nossa revolução e, em vez de punir o tirano, estariam punindo a própria nação.”[1]
O Rei Luís XVI, objeto de discussão do orador, seria executado no mês seguinte, em janeiro de 1793, na guilhotina. O teor de ameaça e de incitação à canalização da violência contra os símbolos do Estado Absolutista era abrandado pelo apelo à defesa da nação, da revolução e do “povo francês”. Mais adiante, no mesmo discurso, prosseguiu Robespierre:
“Cidadãos, trair a causa do povo e nossa própria consciência, abandonar a pátria a todas as desordens que a lentidão desse processo deve excitar, eis o único perigo que devemos temer. Está na hora de ultrapassarmos o obstáculo fatal que nos prende há tanto tempo no início de nossa carreira. Assim, sem dúvida, marcharemos juntos para o objetivo comum da felicidade pública. Assim, as paixões odiosas, que brandam muito frequentemente neste santuário da liberdade, darão lugar ao amor pelo bem público, à santa emulação dos amigos da pátria. Todos os projetos dos inimigos da ordem pública serão vexados.” [2]
Aqui se percebe a emulação (imitação consciente) da retórica religiosa: a revolução era entendida como um processo histórico em que atuavam mártires, que se sacrificavam pela pátria, pelo povo, pelo progresso, pela “salvação da Nação”. Esse discurso, que objetivava a legitimação do uso da violência, acentuou-se na retórica de Robespierre quando seu companheiro, o também jacobino Marat, foi assassinado pela aristocrata Marie-Anne Charlotte de Corday d'Armont. Na ocasião da morte de Marat, no verão de 1793, Robespierre disse aos cidadãos:“Que o gládio da lei caia, que seus assassinos, que seus cúmplices, que todos os conspiradores pereçam. Que o sangue deles seja derramado para satisfazer a alma do mártir da liberdade. Nós o exigimos em nome da dignidade nacional ultrajada.” [3]
O “martírio de Marat”, como foi entendido pelos jacobinos, acentuou ainda mais a ação do terror revolucionário, levando à guilhotina centenas de pessoas consideradas “inimigas do povo francês”. Marat foi objeto de culto e veneração, sendo encarado como um “Santo da Revolução”, o que resultava na conversão da prática política em uma espécie de seita ideológica. Esse matiz obsessivo e implacável dos jacobinos, inclusive, produziu um impacto muito forte em pensadores da época, sobretudo aqueles que se opunham à Revolução Francesa, como o filósofo escocês Edmund Burke.
*Créditos da imagem: Shutterstock e MarkauMark
NOTAS
[1] ROBESPIERRE. “Discurso parlamentar de Robespierre de 28 de dezembro de 1792”. In: GUMBRECHT, Hans Ulrich. As funções da retórica parlamentar na Revolução Francesa – Estudos preliminares para uma pragmática histórica do texto. (trad. Georg Otte). Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003. p. 156
[2] Idem. p. 157
[3] Idem. p. 108.
Por Me. Cláudio Fernandes