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Existem alguns momentos em que percebemos que a reconstrução do passado se torna alvo de disputas bastante inflamadas. No final da década de 1970, por exemplo, a desarticulação do governo militar abriu caminho para uma série de denúncias, textos e obras que falavam sobre a repressão dos militantes de esquerda daquele tempo. Em pouco tempo, observávamos a construção de um discurso em que os setores reprimidos pelo regime “controlavam” uma versão sobre os anos de chumbo.
Foi nesse contexto que, no ano de 1986, um grupo de militares começou a buscar uma resposta a essa “fala dominante” acessando os arquivos de sua instituição de origem para falar de alguns episódios de conflito que marcaram os anos entre 1964 e 1985. Batizado inicialmente como “Projeto Orvil” (“livro” escrito de trás para frente), a obra tinha o aval de Leônidas Pires Gonçalves, na época ministro do Exército do governo José Sarney. Mas, afinal, qual seria a relevância desta obra para o entendimento da época em questão?
No ano de 2000, alguns trechos da obra que contabiliza quase mil páginas de relatos e informações foram disponibilizados em sites da internet e, poucos anos depois, foram alvo da produção de reportagens feitas por alguns jornalistas que acessaram cópias. Entre outras coisas, o livro relata que a participação de estudantes universitários é colocada em segundo plano em relação aos secundaristas, tidos como grandes protagonistas da agitação da época.
Com relação ao Congresso da UNE de 1968, realizado clandestinamente na cidade de Ibiuna, a obra faz um relato também cercado por algumas informações questionáveis. A certa altura, fala que os militares encontraram um expressivo número de drogas e preservativos usados no local, chegando a afirmar que algumas jovens se organizavam em escala para satisfazer sexualmente os militantes ali presentes. Nesse caso, vemos a revivificação de antigos estigmas reservados aos integrantes de grupos de esquerda.
Reafirmando a necessidade de realização do golpe, o livro também faz questão de explorar algumas minúcias de ações terroristas organizadas pelas guerrilhas urbanas que surgiram entre os fins da década de 1960 e os primeiros anos de 1970. Expondo a elaboração e as vítimas atingidas pelos grupos de esquerda, os militares construíram uma argumentação interessada em retirar o tom heroico dos opositores do regime ao colocar em voga o uso da violência em tais ações.
Apesar disso, se engana quem pensa que o livro acaba sendo apenas o lado oposto de uma disputa histórica e ideológica. Nesse mesmo livro, existem valiosas informações de várias ações militares nunca antes confirmadas pelos órgãos de comunicação oficiais das Forças Armadas. Entre outros pontos, o projeto que acabara conhecido como “O livro negro do terrorismo no Brasil” faz menção de ações e mortes de alguns militantes que até hoje são dados como desaparecidos.
Percebendo esse tipo de situação, não vemos apenas que o período ditatorial está sendo alvo de uma disputa entre dois setores que discordam entre si e têm interesses distintos para com esse passado. Na verdade, o surgimento desse tipo de obra e a própria limitação de alguns livros feitos por antigos militantes de esquerda apontam para a necessidade de se abrir os arquivos dessa época. Afinal de contas, o passado de uma nação não pode ser extirpado dos olhos de seu povo.
Por Rainer Sousa
Mestre em História