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Método de Kierkegaard
Kierkegaard desenvolveu seu pensamento filosófico a partir de um método que tinha por objetivo passar do pensamento para a ação. De inspiração socrática, Kierkegaard se dedicava a dialogar com a pessoas, onde quer que elas se encontrassem, provocá-las e refutar suas ideias. Sobre Sócrates, ele diz: “Não se dava com ele o caso daquele filósofo que, ao explanar suas intuições, seu discurso era a própria presença da ideia. Muito pelo contrário: o que Sócrates dizia significava algo de diferente” (O Conceito de Ironia, p.25).
A ironia socrática era a etapa do método dialógico em que Sócrates perguntava o que as pessoas sabiam para que, elas próprias, ao tentarem defender suas opiniões, percebessem a limitação de seus argumentos, a contradição entre eles e a imprecisão de seus conceitos. Derivada do verbo eirein (perguntar), a palavra “ironia” tinha o sentido de interrogação fingindo ignorância. O recurso, aprendido com Sócrates, era desenvolvido por Kierkegaard não apenas como recurso estilístico ao escrever seus textos, ele levava o recurso para a sua vida a fim de que sua existência e sua escrita estivessem afinadas.
Ele mesmo referia a si mesmo como um ironista (ou um irônico, em outra possibilidade de tradução):
“Quando vier o leitor amigo, não terá dificuldade em ver que, quando passei por um ironista, a ironia não estava de modo algum onde julgava um venerável público cultivado; para semelhante leitor, é evidente que não iria cair na miséria de admitir que um público possa entender de ironia, o que é tão impossível como existir em massa o Indivíduo” (Ponto de Vista Explicativo, pp.63-64).
Em sua obra, a primeira ironia era que o autor religioso estivesse presente, mas ocultado pelo autor estético. Depois, ele próprio foi alvo de deboche público, por parte de jornais como “O Corsário” que o representava em caricaturas que ressaltavam suas roupas extravagantes e de uma deformidade na coluna. Os ataques do jornal começaram a partir da recusa pública que Kierkegaard fez à resenha elogiosa sobre sua obra Ou...Ou. Logo, toda a cidade passou a debochar do filósofo, o que contribuiu para sua reclusão.
Sobre isso, ele narra:
“Se alguma vez Copenhague formou acerca de alguém uma opinião, atrevo-me a dizer que foi de mim: era um madraço, um ocioso, um vadio, um homem superficial, um bom cérebro, até brilhante, espirituoso, etc., mas completamente desprovido de 'seriedade'. Eu representava a ironia da sociedade, o prazer da vida e o prazer mais refinado, mas sem uma pitada de espírito 'sério e positivo'; em compensação, era extremamente interessante e mordaz” (Ponto de Vista Explicativo, p.55).
Ou seja, percebemos que ele estava consciente do papel que desempenhava, da forma como seria visto e quais as consequências disso para a sua vida prática. Assim como Sócrates fingia não saber sobre uma questão a fim de levar o interlocutor a reconhecer algo que inicialmente refutava, Kierkegaard pretende manter essa distância entre o interior e o exterior a fim de que seu interlocutor não desconfie ou se sinta ameaçado. Ele fazia isso, por exemplo, quando negava que era cristão, em oposição à expressão do cristianismo na Dinamarca do seu tempo, quando tinha uma preocupação filosófica com o “tornar-se cristão”.
Os três estádios e a ironia
Para compreender melhor o conceito de “ironia”, precisamos nos referir ao estádio estético da existência. Para Kierkegaard, a existência compreende três estádios (Stadier):
1) O estádio estético, no qual o homem se abandona à imediatidade, não há uma aceitação consciente de um ideal. A busca pelo prazer imediato faz com que o esteta atribua maior importância à possibilidade de realização do que à própria realização. São três os modos de ser do estádio estético: a sensualidade, representada por Don Juan; a dúvida, por Fausto; o desespero, pelo judeu errante Ahasverus.
2) O estádio ético, no qual o homem se submete à lei moral e opta por si mesmo. Ao falar do estádio ético, Kierkegaard fala do marido fiel: o modo de vida ético é o modo de vida do indivíduo que é correto com a família e trabalhador. Trata-se não mais do indivíduo que busca o prazer, trata-se do indivíduo que ordena sua vida em relação ao cumprimento do dever. Diz Kierkegaard: “A esfera ética é uma esfera de transição, que todavia não é atravessada de uma vez por todas...” (Kierkegaard, Stadi sul cammino della vita, p. 693). Ela oferece uma forma de preparação para o estádio religioso.
3) O estádio religioso: o último estádio proposto por Kierkegaard, é o que vai além do estádio ético e é o ponto mais alto a que se pode chegar; é, portanto, o estádio onde se efetiva a realização do indivíduo. Se, no estádio ético, o homem pode transgredir uma lei feita por homens, no estádio religioso, o erro é contra leis estabelecidas por Deus; portanto, significa pecado. O estádio religioso suspende o estádio ético quando o indivíduo estiver diante de uma escolha que implica em uma finalidade maior. O exemplo que Kierkegaard oferece é o de Abraão que aceita sacrificar seu filho para que se cumpra a promessa da divindade na qual ele acredita.
Comunicação indireta
Essa breve explicação dos estádios de existência para Kierkegaard se relaciona à ironia de duas formas. Como recurso estilístico com o qual escreveu suas obras literárias e filosóficas, a ironia aparece nas obras estéticas de Kierkegaard. Por meio da ironia e da comunicação indireta, Kierkegaard prepara o leitor em vez de fazer ataques diretos: ele estava interessado em comunicar suas ideias de forma que seus leitores pudessem agir existencialmente, ou seja, despertá-los para suas próprias existências. Para Kierkegaard, o conhecimento que está mais relacionado à vida só pode ser comunicado de forma indireta para que o interlocutor seja levado à ação.
Pelo método indireto, Kierkegaard pretende conduzir à reflexão cujo universo é o interior e que objetiva levar o leitor a encontrar a verdade existencial. A verdade existencial não deve ser comunicada como uma doutrina, por isso é necessário que o leitor a perceba como uma possibilidade a ser realizada. Dessa forma, Kierkegaard começa a sua obra na dimensão existencial em que seus leitores se encontram para que eles despertem para a reflexão sobre suas existências.
Sobre o método de Kierkegaard, diz Ernani Reichmann:
“Este é o segredo da maiêutica kierkegaardiana: o método indireto, que foi aprender com Sócrates. E é assim que Kierkegaard introduz a todos no problema religioso, como queria, sem que o leitor perceba para onde está sendo conduzido através de uma dialética que alcança momentos de rara perfeição, como nessa obra tão conhecida que é 'Temor e Tremor'” (REICHMANN, Ernani. Intermezzo Lírico-Filosófico. Curitiba: Edição do autor, 1963, p.25. ).
A ironia como zona-limite entre o estádio estético e o estádio ético
Nós falamos sobre os estádios da existência para avançar na nossa compreensão a respeito da ironia para Kierkegaard. Na obra Post Scriptum, Kierkegaard fala sobre a ironia como uma zona-limite entre o estádio estético e o ético. O que isso significa?
No estádio estético, como vimos, o indivíduo experimenta sua liberdade orientado pela busca pelo prazer e não questiona seus valores e se seus comportamentos precisam ser mudados. Na existência irônica, entendida aqui como não apenas um dispositivo de discurso, o indivíduo se coloca entre a imediatidade e a ética. Ou seja, o irônico não age mais tendo em vista o sensual, ele opera um movimento em direção à interioridade a partir do sensível.
O irônico percebe sua natureza imediata e também a possibilidade de fundamentar sua existência em um ideal que transcende o imediato e o qual ele também é capaz de compreender. No entanto, pelo desapego do indivíduo em relação ao mundo, ele se distancia dos outros indivíduos e evidencia uma contradição entre seu comportamento exterior e sua interioridade.
<p align="JUSTIFY" lang="pt-PT" background-image:="" initial;="" background-attachment:="" background-size:="" background-origin:="" background-clip:="" background-position:="" background-repeat:="" initial;"="">Ao perceber sua interioridade, o irônico se diferencia do indivíduo no estádio estético, porém não se decide a escolher e, por isso, não está no estádio ético.
Créditos da imagem: jorisvo / Shutterstock.com
KIERKEGAARD, S. O conceito de ironia constantemente referido a Sócrates. 2ª edição. Tradução de Álvaro Valls. Bragança Paulista: EDUSF, 2005
_____________. Ponto de Vista Explicativo da Minha Obra Como Escritor. Tradução de João Gama. Lisboa: Edições 70, 1986.
____________. Post scriptum aux miettes philosophiques. Tradução de Paul Petit. Paris: Gallimard, 1949.
REICHMANN, Ernani. Intermezzo Lírico-Filosófico. Curitiba: Edição do autor, 1963.
Por Wigvan Pereira
Graduado em Filosofia