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O filósofo dinamarquês Søren Aabye Kierkegaard (1813-1855) dizia sobre si mesmo: “Já comecei pela reflexão. Não adquiri um pouco de reflexão com a idade. Sou reflexão do começo ao fim”. Com isso e à luz de seus escritos podemos dizer que a fonte da obra de Kierkegaard é sua própria existência. Por isso, para compreendê-la é preciso conhecer alguns dados biográficos, como a contestação à Igreja Oficial da Dinamarca, da qual seu irmão era bispo. A relação com o pai, que já tinha 56 anos quando o filho nasceu, e o amor por Régine Olsen são os fatores que abordaremos neste texto.
A culpa do Pai
Sobre a relação com o pai, Michael Pedersen, Kierkegaard escreve:
“Aqui reside a dificuldade de minha própria vida. Fui educado por um velho com uma severidade extrema no cristianismo, o que perturbou minha vida de uma maneira horrível e me levou a conflitos dos quais ninguém suspeita e muito menos chega a falar.” (Kierkegaard, Diario, p. 341.)
O pai de Kierkegaard havia sido muito pobre na infância. Era pastor de ovelhas na Jutlândia e se mudou para Copenhague, capital da Dinamarca, onde enriqueceu como comerciante de lãs. A expressão religiosa jutlandesa era marcada por um pietismo triste e ancorada na culpa e no medo da punição. Em Copenhague, frequentou a congregação Irmandade Morávia, marcada por um pensamento religioso austero que enfatizava a condição pecaminosa da natureza humana.
“É verdadeiramente terrível, quando em certos momentos, penso em todo esse fundo sombrio de minha vida, desde os primeiros anos. A angústia, com o qual meu pai me enchia a alma, sua terrível melancolia, a multidão de coisas que não posso sequer apontar. Essa mesma angústia me dominava diante do cristianismo e, no entanto, eu me sentia atraído por ele tão intensamente” (apud Reichman, 1978, p. 19).
A melancolia do pai, da qual se torna herdeiro, era devido a duas culpas: a de ter blasfemado contra Deus, ainda na infância, e a de ter violado a mãe de Kiekergaard, Anne Lund, analfabeta e doméstica em sua casa, quando ainda era casado com a primeira esposa. Sobre isso, o filósofo dinamarquês nos conta:
“Até os 82 anos de idade meu pai não tinha conseguido esquecer um fato terrível: quando criança, no cerrado* da Jutlândia. Pobre pastor de ovelhas esfaimado e sujeito a todos os males, do alto de uma colina enquanto cuidava dos animais, lançou contra Deus uma maldição.” (Kierkegaard Pap. VII/1 A 5)
Sobre o pecado do pai, Kierkegaard pensava que a morte de seus cinco irmãos e de sua mãe era decorrência dele:
“Foi então que se produziu o grande tremor de terra, que me impôs subitamente uma nova lei de interpretação infalível de todos os fenômenos.
Suspeitei nesse momento que a idade avançada de meu pai não era uma benção divina, mas uma maldição e que os dotes intelectuais de nossa família só tinham sido concedidos para que se precipitassem uns contra os outros.
Senti o silêncio da morte estender-se ao redor de mim, quando vi em meu pai um infeliz que devia sobreviver a todos nós, cruz plantada sobre o túmulo de suas esperanças.
Uma falta devia pesar sobre toda a família, um castigo de Deus devia ter-se precipitado sobre ela” (Kierkegaard, Diario, p. 80).
Além desses fatores, a influência de Michael Pedersen se faz sentir pela educação que proporcionou ao filho: ofereceu como professor Jakob Mynster, um pastor crítico de Hegel; também exigia que o filho representasse histórias e cenas teatrais. Também, por influência, Kierkegaard matricula-se no curso de teologia na Universidade de Copenhague em 1830, concluindo apenas em 1840, em decorrência tanto de uma vida cultural oposta à austeridade que aprendera com o pai, tanto de suas próprias críticas à religião e ao papel do religioso.
Diferente também do pensador solitário que se tornaria depois, Kierkegaard torna-se presença constante em teatros e festas, período que podemos identificar ao seu conceito de “estádio estético”: marcado tanto pelo hedonismo, tanto pela indiferença ao mundo, o indivíduo nesse estádio tem o prazer como valor fundamental da existência, mas escolhe não fazer escolhas: “Eu posso fazer isto ou aquilo, mas, qualquer coisa que eu faça, é um erro, logo não faço nada” (Kierkegaard, O. C. IV, p. 155 ).
Em 1886 passou por um colapso que abalou sua espiritualidade. Nesse mesmo ano, por razões não explicadas, Kierkegaard rompeu com o pai e se reconciliou pouco antes de sua morte, em 1838. Marcada pelo não querer ser si mesmo, essa fase tem afinidade com o conceito de desespero que ele cunharia anos depois.
“Acabo de voltar de uma sociedade onde eu era a alma: as palavras espirituosas jorravam de minha boca, todo o mundo ria, me admirava – mas eu me retirei... Fui embora e queria me matar com um tiro. Morte e inferno, posso abstrair de tudo, mas não de mim mesmo; não posso me esquecer de mim nem quando estou dormindo” KIERKEGAARD, apud FARAGO, F., Compreender Kierkegaard, p.36.
Mesmo a morte do pai reverberá na filosofia de Kierkegaard: além de ser o evento que o permitiu despertar da crise, para ele, a morte do pai era um sacrifício. Convencidos, ambos, de que sua família era marcada por um destino trágico pelo qual Michael Pedersen deveria pagar sofrendo a morte de seus filhos, a morte do patriarca foi entendida como se o pai o tivesse o substituído em seu destino de morrer ainda jovem. Por isso temos as linhas:
“Meu pai morreu na quarta-feira às duas da madrugada. Eu queria profundamente que ele vivesse ainda dois anos e vejo em sua morte o último sacrifício que seu amor fez por mim, porque não morreu para mim, mas por mim, para que eu possa, se ainda for possível, fazer qualquer coisa” (Kierkegaard, Diario, p. 80).
Depois da morte do pai, o filósofo recebeu uma considerável herança e pôde se dedicar a escrever seus livros e autopublicá-los sob diversos pseudônimos. Antes disso, porém, cumpriu o desejo de seu pai e formou-se em Teologia e, depois de três anos, recebeu o título de Mestre com a tese “Conceito de ironia constantemente referido a Sócrates”.
Régine Olsen foi o grande amor da vida de Kierkegaard
Regina Olsen: O sacrifício de amor
Em 1837, Kierkegaard conhece Régine Olsen e tanto o amor por ela, tanto a ruptura do seu noivado em 1841 são acontecimentos que repercutem em sua obra. Os motivos que levaram ao rompimento nunca foram esclarecidos, só conhecemos seus efeitos na vida de ambos: Régine opta por se casar com Fritz Schlegel, em 1849, e Kierkegaard, dedica a ela várias de suas obras, referindo-se a ela como “min Laeser”, termo dinamarquês que pode ser aplicado a ambos os gêneros: meu leitor/minha leitura. Régine seria, assim, a leitora a quem o filósofo direcionaria suas reflexões.
Sobre seus “Dois discursos edificantes”, ele declara: “pensava sobretudo no: meu leitor. Porque este livro continha uma pequena indicação que lhe era dirigida” (Kierkegaard, O. C. XVI p. XXII). E, também: “Escrevi ‘A Alternativa’ e, principalmente, o ‘Diário do Sedutor’, por causa dela” (Kierkegaard, O. C. XVI p. XXI). Sobre o amor que sente: “Você, a dona do meu coração, escondida no mais profundo do meu peito, no meu pensamento vital mais copioso, lá a partir de onde é igual a distância até o Céu e até o Inferno***”. E, ainda: “Amada ela era. A minha existência exaltará a sua vida de um modo absoluto. A minha carreira de escritor poderá ser também, considerada como um monumento ao seu mérito e glória. Eu a levo comigo na História” (Kierkegaard, Diario, p. 150).
Uma explicação para o rompimento é o de que Kierkegaard queria preservar a noiva da maldição que ele acreditava estar sobre a sua família. Desse forma, ele teria feito um sacrifício de amor. Ele a conheceu, conforme vimos, em um processo de transição entre a fase em que se entregava aos prazeres e a fase em que se reaproximava da teologia. Após apresentar sua tese de mestrado, Kierkegaard também profere o primeiro sermão. Passou a entender que a vida compartilhada com outra pessoa não correspondia ao papel que ele pretendia desempenhar, mesmo que recusasse o título de pastor. O luteranismo, ele considerava como uma doutrina oposta à religiosidade interior, a qual ele entendia como fundamental para o verdadeiro cristão e escreveu diversos artigos defendendo suas posições. Sobre isso, dizia: “Pastores são oficiais do rei; oficiais do rei nada têm a ver com a cristandade”****.
Assim, romper o noivado, embora o marcasse profundamente, parecia coerente com sua decisão de se dedicar à filosofia e à teologia. Ele próprio apresenta essa interpretação, na qual a vida comum não podia ser compatível com o modelo de vida que queria seguir: “Tinha um espinho na carne.... foi por isso que não me casei e não pude me adaptar às condições da vida comum. Daí concluí que minha missão era a de alguém extraordinário” (apud Colette, La difficoltà di essere cristiani, p.129 )
Sua missão, ele expressa em um texto que contém as bases da filososifa da existência: “Trata-se de encontrar uma verdade que seja verdade para mim, de encontrar uma ideia pela qual eu possa viver e morrer. E que utilidade teria para mim encontrar uma verdade chamada verdade objetiva, percorrer os sistemas dos filósofos, e poder, quando exigido, fazer um resumo destes?” (Kierkegaard, Textos selecionados, p.39) .
* Esta citação vem do artigo de Harbsmeier, traduzido para o português por Karl Erik Schollhammer. A tradução do termo dinamarquês por “cerrado” pode ser polêmico, mas preferimos manter a tradução como foi feita.
*** Kierkegaard, Pap. LlA 347, apud HARBSMEIER, Eberhard, 1993, p.197
**** KIERKEGAARD, Søren Aabye. OS PENSADORES. Ed. Abril, Victor Civita, São Paulo, 1979.
Por Wigvan Pereira
Graduado em Filosofia