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Se outrora as paisagens do “rural” e do “urbano” estavam nitidamente separadas geográfica, econômica e culturalmente, com o recrudescimento do processo de industrialização e expansão dos centros urbanos (e, obviamente, com a disseminação de uma cultura urbana do ponto de vista das necessidades materiais) houve uma interposição desses dois universos.
Consequentemente, houve também uma descaracterização do tipo ideal da vida e da sociedade rurais. Dessa forma, considerando-se a Sociologia Geral como a ciência que se dedica à compreensão dos fenômenos sociais frutos das relações humanas – entre os homens e destes com o meio – erigidas numa determinada sociedade e, que a Sociologia Rural se debruçaria sob os fenômenos sociais intrínsecos ao campo, como esta última, enquanto perspectiva sociológica, teria sobrevivido às mudanças de seu objeto de estudo? Em outras palavras, teria a Sociologia Rural desaparecido diante do desbotamento da especificidade do mundo rural?
A Sociologia Rural, como a Sociologia Geral, nasceu de um momento de crise, com a preocupação de ter como problema sociológico fenômenos sociais do campo e, mais precisamente, problemas sociais, como êxodo rural, mudanças nas relações de trabalho, e a disseminação de uma cultura citadina, urbana. O caráter dessas mudanças é indiscutível, e está no bojo dos acontecimentos que fundamentaram o recrudescimento do processo capitalista de produção.
Entre uma produção propriamente teórica com a preocupação de apenas produzir e acumular conhecimento, e uma outra, pautada por um engajamento, enquanto pesquisa aplicada para ações efetivas, é possível afirmar ter prevalecido esta última na gênese da Sociologia Rural. Saber as condições precárias da vida do homem do campo e, de uma certa forma, todas as outras influências do ponto de vista cultural desse indivíduo, foi o que parece ter motivado trabalhos como o de Antonio Candido, em Os parceiros do Rio Bonito, e de tantos outros. A Sociologia Rural, dessa forma, teria nascido por necessidade e assim incorporaria um caráter utilitarista, no sentido da apologia à reforma social para melhorar as condições de vida do homem do campo. No entanto, Aldo Solari (1979) afirma que tal pretensão seria errônea, cabendo à Sociologia apenas a interpretação dos fatos, assumindo um possível caráter enquanto ponto de apoio para as políticas públicas no âmbito do rural. A despeito de sua louvável preocupação em promover melhorias, a Sociologia Rural (como a Geral) deveria ter por “[...] objeto observar os fatos, descobrir leis, interpretar suas causas, explicá-las; ela se ocupa daquilo que os fatos são, e não do que deveriam ser” (SOLARI, 1979, p. 4).
Se, enquanto ciência, a Sociologia Rural surgiu em um momento de mudança com as transformações ocorridas no campo, isso significa que sua gênese está na imbricação desses dois universos, do rural e do urbano. No entanto, segundo Solari (1979), mais do que uma dicotomia entre rural e urbano, o que existiria seria um “contínuo”, uma escala gradativa, haja vista as diferenças apontadas entre tais categorias (rural e urbano) não serem válidas permanentemente, podendo mudar de uma sociedade para outra. Em outras palavras, aquelas “diferenças fundamentais entre o mundo rural e o urbano”, apontadas por outros autores como Sorokin, Zimerman e Galpin (1981), não dariam conta de explicar possíveis faixas transitórias, uma vez que estas não apresentariam na totalidade nem características exclusivamente rurais, nem exclusivamente urbanas. Seria preciso considerar o grau de desenvolvimento dos centros urbanos para pensar o rural, o qual poderá ser mais ou menos urbanizado.
Assim, o momento de crise no âmbito do campo refere-se ao início dessa sobreposição entre o urbano e o rural e, dessa forma, considerando que essas transformações não ocorreram (e nem ocorrem) de maneira homogênea, surgem diferentes graus dessa mesma sobreposição, ora mais acentuada, ora mais superficial.
A modernização do campo é um processo sem volta no Brasil e no mundo, e dessa forma, considerando-se os movimentos de êxodo rural; a urbanização do campo pela chegada de uma infraestrutura característica das cidades; a expansão do agronegócio com implantação de alta tecnologia e ampliação da escala de produção; a aglutinação das pequenas propriedades pelas grandes companhias proprietárias de grandes latifúndios e a incorporação de uma cultura (no sentido das necessidades materiais) citadina pela família do campo, estariam as característica peculiares do campo fadadas ao desaparecimento? E, mais fundamentalmente, o que restaria à Sociologia Rural como objeto de estudo, uma vez que o homem do campo vai se tornando cada vez mais parecido com o da cidade? Dessa forma, tais questões sugerem a criação de um grande paradoxo. Se a Sociologia Rural teria nascido de um momento de crise do campo diante do processo de urbanização das cidades e da modernização dos meios de produção, o recrudescimento desse processo estaria condenando-a a uma situação de incapacidade extrema enquanto ciência social, haja vista o paulatino “desaparecimento” de seu objeto de estudo: o próprio meio rural, o próprio campo. Em outras palavras, o processo (de urbanização, modernização) que criou condições para sua existência, agora estaria sufocando-a pela transformação considerável que o campo sofrera.
No entanto, segundo importantes referências no estudo da Sociologia Rural, talvez o aparente paradoxo apontado quanto aos efeitos da sobreposição do urbano pelo rural não se sustente. Por ser fato a passagem do rural para o urbano, por outro lado tem-se a invasão do campo pela cidade, chamada por Aldo Solari (1979) de urbanização do meio rural. A intensidade de tais fenômenos levaria a uma crise estrutural da sociedade e ao recrudescimento da Sociologia Rural, por surgirem novos problemas que não estariam descolados da ruralidade por se tratarem de consequências da modernização no seu sentido urbano, uma vez que o lócus de sua operação seria o próprio campo. Dessa forma, essa situação de constante aproximação entre o urbano e o rural não significaria, necessariamente, a extinção do campo e, consequentemente, da Sociologia que dele trata. Ao contrário, apenas reforçaria ainda mais o caráter da importância do diálogo entre “rural e urbano” que aqui já se afirmou. Mais do que isso, o que não se pode perder de vista é o fato de que dentro desse “contínuo” existente numa escala em que numa extremidade ter-se-ia o rural e na outra o urbano, dois fatos são evidentes: em primeiro lugar, tanto um extremo como o outro seriam tipos ideais – categorias puras – que não se encontrariam na realidade; em segundo lugar, dada a diferença da intensidade com que os processos de modernização acontecem nas mais diversas áreas rurais do globo, essa escala permitiria uma infinidade de classificações. Isto posto, fica claro que tal diálogo seria sempre presente, embora variando em grau, em intensidade, mas nunca permitindo a sobreposição total de um (seja do rural, seja, do urbano) sobre o outro.
O contraste entre a vida metropolitana e a vida em vilas ou fazendas não desaparecerão tão cedo [...], visto que a vida rural é algo mais amplo do que a ‘sociologia da ocupação agrícola’, é improvável que esse campo seja absorvido pela sociologia industrial. Além disso, já que todos os aspectos da vida grupal são caracterizados por traços genéricos da vida rural, outras especialidades (tais como a demografia ou a família) continuarão recebendo contribuições da sociologia rural. (ANDERSON, 1981, p. 184)
No tocante ao papel da Sociologia Rural, talvez mais do que a preocupação com sua extinção ou desaparecimento, seria interessante sugerir uma discussão sobre sua readequação para lidar com a gama de novos fenômenos sociais ou nova roupagem dos que já se faziam presentes outrora. Além disso, dado o nível de complexidade do sistema capitalista de produção que pressupõe uma relação centro periferia entre os países, na qual a produção agrícola, a agropecuária e a exploração da terra, de maneira geral, geram insumos para os mais diversos ramos industriais, a proximidade rural urbano se torna ainda mais patente. Assim, conceitos, categorias e uma terminologia que deem conta dessas novas realidades se fazem necessários. As mudanças econômicas, políticas e sociais vividas pelo campo conduziram a uma preocupação direta com a recolocação da finalidade da terra e da atividade do homem.
Para exemplificar, surge dessa forma a preocupação com a questão da multifuncionalidade e pluriatividade. Tais conceitos são exemplos das transformações do aparato metodológico da Sociologia Rural para lidar com a realidade do campo. A multifuncionalidade estaria associada ao sentido da criação de meios (pelo poder público) para o desenvolvimento e promoção da terra, do território. Não se trataria do desenvolvimento setorial, isto é, do produtor rural ou do agricultor familiar, mas de um conceito que engloba as questões de planejamento para garantir o desenvolvimento local como políticas públicas, no sentido da segurança alimentar, do tecido social, do patrimônio ambiental, entre outras imprescindíveis ao desenvolvimento territorial.
Quanto à pluriatividade, esta estaria remetida ao novo comportamento do homem do campo diante das transformações sociais ocorridas, o qual teria agregado outras funções que não apenas a de agricultor. Do turismo rural à produção de produtos alimentícios, característicos do campo, em grande escala (comumente por meio de cooperativas e pequenas empresas familiares), estariam as novas funções do indivíduo pluriativo do campo. Dessa forma, nas palavras de Aldo Solari (1979), o homem do campo vai se convertendo cada vez mais em um empresário, manejando uma organização de caráter econômico, através da qual deve obter um rendimento. Assim, tais conceitos e categorias seriam, na verdade, resultado do esforço da Sociologia Rural diante desses novos desafios. A criação de mecanismos de classificação e leitura desses espaços é de extrema importância para a formulação de políticas públicas em todas as esferas (municipal, estadual e federal).
Embora a Sociologia tenha seu campo de estudo predeterminado – a saber, os fenômenos sociais erigidos da vida no campo –, talvez seja possível afirmar que ela não poderia prescindir dos elementos constitutivos dos fenômenos estritamente urbanos, mas, ao contrário, deveria travar um diálogo com estes, haja vista que o que aqui se chamou de sobreposição nada mais é do que este diálogo propriamente dito entre o rural e o urbano. Se há uma ruralidade na cidade, há também uma urbanidade no campo. Mesmo diante da complexidade das análises sociais em tempos de constantes mudanças, cabe à Sociologia se adequar do ponto de vista metodológico e epistemológico. Mais do que a preocupação com sua extinção enquanto braço da Sociologia Geral, o que importa é conseguir ultrapassar o desafio de continuar apontando alternativas e leituras sobre as questões do mundo rural de modo pertinente. O rural está se transformando, o que não significa que ele está acabando. Da mesma forma, isso vale para a Sociologia Rural.
Paulo Silvino Ribeiro
Colaborador Brasil Escola
Bacharel em Ciências Sociais pela UNICAMP - Universidade Estadual de Campinas
Mestre em Sociologia pela UNESP - Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho"
Doutorando em Sociologia pela UNICAMP - Universidade Estadual de Campinas