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Educação, a melhor arma contra a violência. Conheça o Projeto Uerê

Veja como o trabalho de educadores e a vontade de ver um futuro mais pacífico tem mudado a vida de milhares de jovens do Complexo da Maré, no Rio de Janeiro.

Em 23/07/2024 10h00 , atualizado em 23/07/2024 12h38
Imagem ilustrativa de crianças brincando no projeto Uerê
O projeto Uerê já ajudou milhares de crianças com seus projetos educacionais Crédito da Imagem: Gabriel Franco
Ouça o texto abaixo!

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Educação é fonte de esperança, mesmo em realidades que estão secas, às vezes, de tanto sangrar. A força das palavras pode não ser intensa como a das armas, mas, certamente, é mais duradoura. 

Exemplo desta lição é a história (ou as histórias) do projeto Uerê. O começo de tudo foi nos anos 80, quando Yvonne Mello começou o projeto Escola sem Portas e nem Janelas, visando ajudar crianças em situações de rua.

Até que, em 1993, na Chacina da Candelária, um grupo de policiais militares matou alunos atendidos por Yvonne. A vítima mais velha tinha 19 anos, a mais nova, apenas 11. 

Mesmos com os desafios, a iniciativa foi se desenvolvendo até conseguir uma sede no Complexo de Favelas da Maré, em 1998. Desde então, mais de 130.000 mil crianças já foram atendidas no projeto Uerê, que conta com uma pedagogia pensada para crianças traumatizadas pela violência. Atualmente, mais de 300 crianças participam desta história. 

Na busca de conhecer melhor este projeto, conversamos com a fundadora, Yvonne Mello, e com a professora participante, Viviane Rolemberg.

Veja tudo que descobrimos! 

Yvonne com as crianças da Candelária

Começa a história com a educação

Yvonne nos conta que começou a realizar trabalhos voluntários com 13 anos. Também dedicou seus estudos às crianças vítimas de violência, inclusive, ela realizou uma tese na França sobre problemas cognitivos em crianças de países em guerra.

Com o passar dos anos, Yvonne se especializou cada vez mais em educação de crianças que vivem em situações de guerra e guerrilha urbana. Seguindo neste caminho, ela desenvolveu a pedagogia Uerê-Mello nos anos 2000, sobre esta trajetória Yvonne declarou:

"O primeiro livro da pedagogia foi no ano 2000, depois que eu trabalhei 13 anos nas ruas. Antes, eu trabalhei na Europa, na África. Dei muita aula em 5 países africanos, não só visitei para escrever minha tese como também voltei para ensinar. 

Eu fiquei 13 anos trabalhando só nas ruas do Rio de Janeiro e comecei a colocar todas as minhas anotações de anos. Foi assim que nasceu a pedagogia, que foi a minha experiência de décadas com esse tipo de criança e adolescente"

Características da pedagogia Uerê-Mello

A pedagogia Uerê-Mello, criada para alunos que vivem em comunidades violentas com traumas constantes, desenvolve métodos para conseguir o foco e atenção destas crianças, pois a escola tradicional é falha neste quesito. Yvonne explica:

"Não pode ser! Você pegar uma criança, sentar ela 5 horas em um banco e ficar copiando do quadro, isso não existe com essas crianças, entende?

Porque elas tem vários traumas que impedem o aprendizado de várias maneiras"

A pedagogia utilizada já foi considerada pela Unicef como uma das 6 melhores do mundo para ajudar crianças em regiões de conflito. 

Documento da Unicef que fala sobre o projeto Uerê. Fonte: Divulgação/Unicef

Rotina dentro do projeto Uerê

O projeto Uerê começa seus trabalhos diariamente às 8 horas e funciona em dois turnos. É uma ONG, mas não realiza o reforço escolar tradicional, Yvonne explica:

 "As crianças estão na escola e não aprendem, não aprenderam naquele sistema. Então, não adianta fazer reforço por que elas vão continuar não aprendendo.

O que nós fazemos é: quando chega, nos fazemos um teste, normalmente, as crianças que chegam sempre tem dois anos de defasagem em conhecimento, quer dizer, um aluno do 6° ano vai fazer a prova do 4° ano"

Essas avaliações são aplicadas todos os trimestres. A idealizadora do projeto ainda diz que o desafio não é ensinar as matérias da escola, mas, sim, as crianças terem um conhecimento geral que possa alavancar o aprendizado.

Yvonne disse:

"A pedagogia Uerê-Mello é 70% oral, porque não adianta um aluno  escrever coisas que ele não entende, ele só vai escrever depois que ele entende. Então, todos os exercícios e todas as aulas elas são feitas oralmente.

Primeiro, porque você tem que fazer com que os dois hemisférios do cérebro funcionem corretamente e, para isso, você precisa de concentração, de foco, de memória e de emoção. Isso tem que funcionar, se não, as sinapses não vão acontecer"

A professora Viviane, que trabalha no projeto há 10 anos, afirma que a pedagogia dá resultados. Ela cita como exemplos crianças de 10 e 11  anos que chegam sem saber ler, nem escrever e a partir das técnicas e jogos orais, elas desenvolvem a escrita entre 3 e 6 meses. 

Professora Viviane. Créditos: Acervo Pessoal

Viviane fala sobre um momento dentro do projeto dedicado ao desenvolvimento da velocidade cerebral, que ajuda as crianças a assimilarem o conteúdo que vai entrar no resto do dia. Yvonne, a fundadora do projeto, detalha:

"O cérebro não aprende se ele não tiver um link. Então, não adianta você falar de uma coisa que, na memória longa, aquele conhecimento não existe. Você tem que entender, primerio, que eles não sabem e aí você tem que fazer de uma maneira que o cérebro comecesse a ter entendimento daquilo que você quer entrar.

Por exemplo, eu ensino filosofia e vou falar dos gregos, de que adianta eu chegar e falar - "Olha, antes de cristo teve um filósofo chamado Sócrates"? É como falar para uma parede, porque eles nunca ouviram falar da Grécia, não tem aquele conhecimento que precisa para alavancar o entendimento.

O que que eu faço? Preciso falar o que é o que, mostro mapas, falo o que é a Grécia... Até o momento que falarei de Sócrates, mas isso demora duas ou três aulas."

Desafios do projeto Uerê

Viviane afirma que a violência constante no local onde as crianças vivem é o principal problema enfrentado. Ela diz que os conflitos armados acabam traumatizando e travando as crianças, por isso, a pedagogia desenvolve uma forma diferenciada para ensiná-las, mesmo após sofrerem destes traumas.

Neste momento da entrevista, questiono se além da violência das ruas, a violência doméstica também é um problema recorrente, Viviane responde que sim e complementa:

"Sim, interfere, mas acho que nosso maior caso aqui, é a violência com armas. Violência doméstica a gente chega a ter, mas não é o ponto principal."

Yvonne diz que há vários níveis da violência doméstica, um deles é quando há membros familiares viciados em drogas, inclusive pais e mães. A educadora declara que esta realidade causa perturbações nas crianças e que elas não podem aprender se não tiverem paz.

Outro problema decorrente do vício, é que as crianças mais velhas precisam assumir o papel de pais e mães da casa, mesmo com pouca idade, assumem responsabilidades de adulto. Yvonne disse:

"Nós não podemos melhorar essa mãe porque tem outras coisas que tem que ser feitas no estado, etc e tal. Mas, nós podemos fortalecer essas crianças para que essa convivência não a bloqueie mais ainda, entende?

Por isso, que as aulas são divertidas, curtas, não tem aula de 50 minutos, são explicações curtas, 15 minutos com exercício- fala - exercício - fala... Tudo oral, de maneira que a sala de aula seja um local vivo"

Vista parcial do complexo da Maré. Crédito:Wikicommons

Viviane afirma que as aulas são atraentes para as crianças e que há várias histórias de sucesso dentro do projeto. Yvonne exemplifica:

"Vamos dizer que chegou um menino aqui com 11 anos zerado, não sabe nada, quer dizer, passou sete anos na escola e não armazenou corretamente as informações. Então, o que a gente tem que fazer? Primeiro, temos que ver o nível de vocabulário desse menino, porque é muito importante.

Eu sou filóloga, o vocabulário é um grande fator de desenvolvimento. Então, por exemplo, uma criança de seis anos precisa ter 4 mil palavras na memória longa para poder começar a entender e se alfabetizar, ora, esses meninos não têm nem 500 e à medida que os anos vão passando, um menino de 11/12 anos precisa ter 20 mil palavras na memória longa para poder entender, para poder ler um texto"

Viviane explica sobre a relevância do ditado, feito constantemente dentro do projeto Uerê, visando aumentar o vocabulário dos alunos. Também são realizadas redações com este intuito.

Entrevista com Yvonne e Viviane

Yvonne também fala sobre alunos que tem os cadernos lindos e cheios de conteúdo copiado durante as aulas da escola, mas que ainda assim não entendem o que está escrito. Ela afirma que a cópia, só pela cópia, não ajuda no desenvolvimento destes alunos.

Ela declara que, no projeto o Uerê, as crianças precisam estar aprendendo o tempo todo e, para isso dar certo, é preciso diversificar as formas de ensinar. Ela explica:

"Por exemplo, você vai ensinar a história do Brasil e diz - "Pedro Alvarez Cabral descobriu o Brasil!" Sabe o que isso significa para esses alunos? Zero!

Ele vai repetir, mas não sabe quem é Pedro Alvarez Cabral, não sabe nem o que é Brasil. Então, não adianta ter este tipo de ensino, você tem que explicar - Olha, aqui é o mapa, esse daqui é o Brasil, onde vocês moram. Aqui, é Portugal, as caravanas vieram... e mostra. Você tem que fazer com que aquelas histórias tenham um sentido, isso em tudo, se não, de que adianta?"

Participação das crianças

Pergunto a elas se é preciso fazer algum incentivo ou campanha para as crianças participarem do projeto. Viviane me respondeu:

"Eu já trabalhei em outras escolas, nunca vi as crianças irem com tanta vontade para outros lugares como elas tem para ir ao projeto. Eles gostam de estar aqui e eu acredito que seja por conta da pedagogia Uerê mesmo, porque é uma pedagogia diferenciada da escola, não é aquele negócio de cópia, de estar sentado com livro o tempo inteiro, a gente tem os momentos, a gente faz ginásticas, fala outras línguas. Eu procuro sempre trazer novidades do meio deles"

Viviane diz que, no dia da entrevista, ela realizou um projeto no Tiktok com a sua turma de sexto ano para falar números em inglês e foi um sucesso, todos participaram. Yvonne declara que dentro do Uerê não existe casos de bullying, pois as crianças estão sempre felizes. Além disso, elas também revelam que os alunos do projeto aprendem Iorubá (uma língua do oeste da África) e Pataxó, idioma indígena brasileiro. 

Regiões onde habitam os povos pataxó (em azul) e iorubá (em vermelho)

Colaboradores do projeto Uerê

Yvonne diz que todos os professores do projeto são formados, e há uma dificuldade grande de conseguir voluntários, por conta da violência no local. Ela explica que é uma das regiões mais violentas do Rio de Janeiro, que há conflito de facções e que apenas neste ano (até o dia da entrevista) já havia acontecido 19 operações policiais na região.

Isso sem falar dos dias que eles ficam sem água e nem luz. Ela também diz que não aceita voluntários com menos de 24 anos, pois para compreender o território, é preciso maturidade.

Nesse momento, questiono Viviane sobre a trajetória dela até o ingresso no projeto Uerê. Ela conta:

"Eu já conhecia a Yvonne, por causa da história da Candelária, e uma amiga minha (que dava aula no projeto) disse que estavam precisando de uma professora e eu aceitei vir. Eu fazia faculdade na UERJ ainda, hoje eu tenho pós-graduação em história da África pelo Pedro II e fiz pedagogia na UERJ.

Eu me interessei bastante porque eu queria fugir daquele negócio de sala de aula, nunca quis trabalhar numa sala de aula tradicional e o projeto foi o que eu achei que se encaixava mais com meu objetivo de trabalho e de vida. Estou aqui até hoje, já vai fazer 10 anos."

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Yvonne declara que para trabalhar em locais, como o projeto Uerê, não basta gostar das crianças, é preciso ter uma capacitação bem estabelecida. Pois, caso contrário, o nível de qualidade necessário não é atingido. Ela também disse:

"O que eu ofereço no Uerê é uma qualidade muito grande, isso eu faço questão, em tudo que nós fazemos. Os professores tem que ter muito bom nível e isso é uma coisa que, normalmente, não acontece. A gente incentiva, por exemplo, a Viviane está indo para o pós-doutorado.

A gente incentiva ir melhorando nesse seu conhecimento pedagógico e cognitivo, porque se não for assim, nós não vamos ajudar essas crianças"

Significado da palavra Uerê

Yvonne nos conta que Erê é uma palavra que vem do Iorubá e significa criança, tanto no sentido de anjo, como no aspecto físico. Essa palavra se une a uma partícula do hebraico antigo que significa luz e forma a palavra Uerê, crianças de luz.

Símbolo do projeto Uerê. Créditos: DIvulgação

A fundadora do projeto diz que gosta de chamar de crianças do arco-íris dourado. 

Como contribuir com o projeto Uerê

O Uerê é formado por vários projetos, a maioria deles custa 40 mil reais por ano. Apenas dois que tem valores diferentes, sendo a Escola de Música e a Alimentação, que são 800 refeições por dia. As atividades lá realizadas que utilizam a pedagogia Uerê-Mello são:

  • Escola de música
  • Escola de arte
  • 3 salas de alfabetização
  • 4 salas entre 6º e ensino médio
  • Programa para jovens e adolescentes
  • Programa de bolsas de estudo
  • Escola de Futebol
  • Programa "Bate Papo Uerê"

É possível contribuir diretamente com um programa, também é permitido ajudar uma criança específica. Assim como, eles recebem doações de qualquer valor vindo de pessoas físicas, além das ajudas vindas de empresas.

No projeto Uerê, os alunos recebem refeições diárias, aulas curriculares de português, matemática, história, geografia, ciências, idiomas, filosofia, sociologia, história; também são oferecidas oficinas de arte, música, futebol, alfabetização digital e formação em TI.

Mensagem final

Por fim, pedimos para que as participantes do projeto Uerê dessem uma mensagem para quem deseja começar um projeto como este, Yvonne declarou:

"Não existe dificuldade quando você tem a vontade. Eu comecei o Uerê na rua, com uma escola sem portas nem janelas, sem nada. Eu acho que você tem que ter a vontade e tendo vontade você vai começar a achar as soluções.

É muito importante e não ficar dependendo de A, B,ou C; quando eu fui para as ruas do Rio de Janeiro trabalhar, eu fui e montei a escola sem portas nem janelas com três grupos de rua, inclusive o da Candelária, não tinha nada. Então,  a vontade de você melhorar o Brasil pela educação, acho que isso é o mais importante"

A Viviane complementa que é preciso querer ensinar e gostar da educação. Pois, sempre há desafios e não é fácil participar todos os dias, mas gostando do que se faz, é possível passar o melhor de si para as crianças. Ela finaliza:

"Eu acho que se cada educador pensar dessa forma, futuramente, a gente vai ter uma educação melhor e de qualidade em todo país."

 

Por Tiago Vechi

Jornalista