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Desde meados do século XVI recae sobre a Idade Média uma série de noções arbitrárias, preconceito e até mesmo mentiras abertamente fabricadas. A própria expressão “Idade Média” foi cunhada no início da era moderna como forma de se estabelecer um critério de superioridade dos modernos em relação ao homem do medievo. Todavia, sabemos que a história é mais complexa do que se pensa e que há diversos temas inerentes ao período medieval que precisam ser investigados com cuidado. Um desses temas é o da situação da mulher naquela época.
Costumamos ter a visão de que, no mundo medieval, a mulher era submissa à figura masculina, quer no lar, quer fora dele, isto é, nos trabalhos realizados nas cidades ou no campo, ou ainda nas esferas eclesiásticas. Essa ideia nasceu de um preconceito muito comum: o de se achar que, por ter sido uma sociedade orientada pela religião cristã católica, a figura da mulher estaria diretamente associada ao pecado, seja pela narrativa do Gênesis, em que se tem Eva como aquela que induz Adão a pecar, seja pelo corpo feminino, que poderia levar à concupiscência e à luxúria.
Mas o fato é que as categorias de compressão da Igreja Católica, desde suas raízes no cristianismo primitivo, nunca atribuíram à mulher nenhuma condição de inferioridade ou de detenção do pecado em relação ao homem. O cristianismo compreende que o ser humano, tanto a mulher quanto o homem, está exposto ao mal, porque é livre – tem liberdade para aceitar ou negar o bem, a graça. Desse modo, nas esferas social e eclesiástica da Idade Média, como os homens, as mulheres possuíam um grande trânsito. A sociedade não lhes negava espaço a partir de determinações político-religiosas, como bem nota a historiadora Regine Pernoud, no livro “O Mito da Idade Média”:
[…] certas mulheres desfrutaram na Igreja, e devido à sua função na Igreja, dum extraordinário poder na Idade Média. Algumas abadessas eram autênticos senhores feudais, cujo poder era espeitado de um modo igual ao dos outros senhores; algumas usavam báculo, como o bispo; administravam muitas vezes vastos territórios com aldeias, paróquias. [1]
Além da grande influência na esfera eclesiástica, as mulheres também tinha lugar de destaque fora das abadias e conventos. Prossegue Pernoud:
“Nos atos notariais é muito frequente ver uma mulher casada agir por si própria, abrindo, por exemplo, uma loja ou um negócio, e isto sem ser obrigada a apresentar uma autorização do marido. Finalmente, os registros das derramas (nós diríamos os registros dos recebedores), quando nos foram conservados, como é o caso de Paris, no fim do século XIII, mostram uma multidão de mulheres que exerciam profissões: professora, médica, boticária, educadora, tintureira, copista, miniaturista, encadernadora, etc.” [2]
No que se refere à questão das práticas mágicas, feitiçaria, bruxaria, etc., a figura da mulher estava, sim, diretamente relacionada. Isso acontecia em virtude das misturas culturais entre ritos pagãos, de origem romana e germânica, e concepções do cristianismo popular sobre os demônios, ou entidades inferiores. O culto pagão da fertilidade, por exemplo, tinha grande lastro na Idade Média. Contudo, os surtos persecutórios às mulheres identificadas como “bruxas” partiam mais da população que procurava “bodes expiatórios” para explicar algum desastre natural, como secas, enchentes, peste, etc., e menos da Igreja e da Inquisição. A Inquisição, aliás, nasceu como forma de contenção dos linchamentos públicos que eram levados a cabo contra alguém acusado de heresia.
A “caça às bruxas” só se transformou em uma campanha com estandarte religioso na Idade Moderna, quando o Estado, a autoridade civil, já havia se superposto à autoridade da Igreja e aos seus critérios.
NOTAS
[1] PERNOUD, Regine. O Mito da Idade Média. Lisboa: Publicações Europa-América, 1978. p. 95.
[2] Idem. p. 101.
Por Me. Cláudio Fernandes