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ÁGUA: muita procura e pouca oferta
Tudo o que fazemos hoje de certo ou errado terá uma conseqüência no futuro. Refletir sobre isso, principalmente, no que se refere à preservação da água doce do planeta.
Até quando o planeta poderá suportar o ritmo atual de exploração dos recursos de água doce?
A água, fonte de vida, é um recurso de valor econômico e uso coletivo, que deve ser gerido de maneira a não provocar conflitos ou desequilíbrios. O desperdício da água e seu uso indisciplinado trazem conseqüências desastrosas e expõem terras frágeis à desertificação.
PROBLEMA GLOBAL No estudo científico "Vital Signs", de 1993, editado pelo Worldwatch Institute, os pesquisadores Lester Brown, Hal Kane e Ed Ayres chegaram a uma conclusão assustadora: a capacidade da Terra em fornecer o suprimento de água necessário à vida da população terrestre está se esgotando.
Os problemas de água atingem hoje principalmente o Oriente Médio, o Norte da África, a Ásia Central e a África subsaariana. Mas também há escassez na China Ocidental, no Oeste e Sul da Índia, no Oeste da América Latina e em grandes regiões do Paquistão e do México. "
As guerras do século XX foram por petróleo. As do século XXI serão por água", previu o vice-presidente do BIRD (Banco Interamericano de Desenvolvimento), Ismail Serageldin. A possibilidade de conflitos bélicos pelo controle dos recursos hídricos se justifica pela simples razão de que cerca de 220 grandes reservas de água na Terra ficam em regiões de fronteira (dados da Unesco).
Segundo relatório do Banco Interamericano de Desenvolvimento, nos próximos 10 anos, serão necessários 800 bilhões de dólares em investimentos para evitar que o mundo sofra uma seca sem precedentes. Os recursos disponíveis não passam de 40 bilhões.
Pesquisas da Organização Mundial da Saúde comprovam que 1,2 bilhão de pessoas não dispõem de água potável para uso doméstico; 80% das doenças e 30% dos óbitos registrados são causados por água contaminada. No total, 26 nações possuem menos de 1.000m³ de água potável por habitante/ano (segundo a Organização das Nações Unidas), o que coloca uma população de 255 milhões de pessoas à beira do colapso. Segundo a Unesco, o consumo de água no planeta, de 1900 para 1995, aumentou de 6 a 7 vezes, mais que o dobro do crescimento da população no período. Conseqüentemente, a água disponível caiu de 12.900m³/pessoa/ano, em 1970, para 7.600m³, em 1995.
Para eliminar as disparidades e proteger a água, a água fresca precisa ser reconhecida, em nível internacional, como bem e herança comum. Esse conceito, que enfatiza a importância do compartilhamento, é também uma contribuição para a paz. Porque a água, cada vez mais vital, tornou-se também uma questão estratégica. No mundo, 261 bacias fluviais são divididas entre Estados diferentes, o que gera o risco de "guerras pela água". A comunidade internacional precisa impedir que conflitos sobre a alocação da água tornem-se mais ruidosos do que o diálogo, por meio de instrumentos legais sólidos, especialmente nas áreas onde a escassez se alia a tensões políticas.
Nos últimos 20 anos o consumo per capita de água dobrou no Brasil e a expectativa é de que dobre outra vez nos próximos vinte anos. Mas a disponibilidade de água per capita atualmente é três vezes menor do que em 1950. Segundo a OMS (dados de 1998), 72 brasileiros em cada 100 contam com sistema de abastecimento de água.
Disponibilidade da água na terra
A provisão de água doce está diminuindo a nível mundial. Uma pessoa em cada cinco não terá acesso a água potável.
A água é cada vez mais um bem escasso no planeta. Seu volume total não está se reduzindo, porque não há perdas no ciclo de evaporação e precipitação; o que caracteriza a escassez é a poluição. Muito se fala em falta de água e que, num futuro próximo, teremos uma guerra em busca de água potável. O Brasil é um país privilegiado, pois aqui estão 11,6% de toda a água doce do planeta. Aqui também se encontram o maior rio do mundo - o Amazonas - e parte do maior reservatório de água subterrânea do planeta - o Sistema Aqüífero Guarani.
No entanto, essa água está mal distribuída: 70% das águas doces do Brasil estão na Amazônia, onde vivem apenas 7% da população. Essa distribuição irregular deixa apenas 3% de água para o Nordeste. Essa é a causa do problema de escassez de água verificado em alguns pontos do país. Em Pernambuco existem apenas 1.320 litros de água por ano por habitante e no Distrito Federal essa média é de 1.700 litros, quando o recomendado são 2.000 litros.
Mas, ainda assim, não se chega nem próximo à situação de países como Egito, África do Sul, Síria, Jordânia, Israel, Líbano, Haiti, Turquia, Paquistão, Iraque e Índia, onde os problemas com recursos hídricos já chegam a níveis críticos. Em todo o mundo, domina uma cultura de desperdício de água, pois ainda se acredita que ela é um recurso natural ilimitado. O que se deve saber é que apesar de haver 1,3 milhão de km3 livre na Terra, segundo dados do Ministério Público Federal, nem sequer 1% desse total pode ser economicamente utilizado, sendo que 97% dessa água se encontra em áreas subterrâneas, formando os aqüíferos, ainda inacessíveis pelas tecnologias existentes.
A água dos continentes concentra-se praticamente nas calotas polares, glaciais e no subsolo, glaciais e no subsolo, distribuindo-se a parcela restante, muito pequena, por lagos e pântanos, rios, zona superficial do solo e biosfera.
A água do subsolo representa cerca de metade da água doce dos continentes, mas a sua quase totalidade situa-se a profundidade superior a 800 m.
A biosfera contém uma fração muito pequena da água dos continentes: cerca de 1/40.000.
A quase totalidade da água doce dos continentes (contida nas calotas polares, glaciais e reservas subterrâneas profundas) apresenta, para além de dificuldades de utilização, o inconveniente de só ser anualmente renovável numa fração muito pequena, tendo-se acumulado ao longo de milhares de anos.
As perspectivas para o próximo século indicam um cenário de escassez da água até o ano 2050 (revista Veja dez/98):
Previsões: |
1999 |
2050 |
População Mundial |
6.0 bilhões |
9.4 bilhões |
Suficiência |
92% |
58% |
Insuficiência |
5% |
24% |
Escassez |
3% |
18% |
Exaustão do lençol freático: ameaça oculta à segurança alimentar?
A alimentação disponível em muitos países em vias de desenvolvimento depende dos lençóis freáticos utilizados para a irrigação. Se não for feita uma gestão mais sustentável deste recurso, algumas das regiões mais densamente povoadas do globo podem sofrer uma crise grave num futuro próximo.
O primeiro estudo global do IWMI sobre a escassez de água, publicado em 1998, identificou a exaustão incontrolada dos lençóis freáticos como uma ameaça séria à segurança alimentar em muitos países em vias de desenvolvimento.
Nestes países, os lençóis freáticos emergiram como o pilar da economia agrícola alimentar. Mas este precioso recurso não está a ser utilizado de modo sustentável. Nos países que dependem dos lençóis freáticos para a irrigação, o bombeamento excessivo está a provocar a queda das superfícies de água doce para níveis alarmantes. O futuro da segurança alimentar de muitos dos países mais populosos do mundo - China, Índia, Paquistão e quase todos os países do Médio Oriente e da África do Norte – dependerá amplamente da forma como os responsáveis gerem hoje os seus recursos aqüíferos subterrâneos.
As conseqüências da não gestão deste problema são potencialmente catastróficas, especialmente para as populações mais pobres, que são as mais afetadas pela escassez de água. O objetivo do estudo sobre os lençóis freáticos do IWMI é identificar e promover meios de gerir melhor este recurso.
A utilização dos lençóis freáticos põe três problemas:
· a exaustão conseqüente à exploração excessiva,
· a saturação do solo pela água e
· a salinização, causadas por drenagem insuficiente e a poluição, derivada da intensa atividade agrícola, industrial e humana.
Há países que já estão a sofrer as consequências da utilização excessiva dos lençóis freáticos.
Em Henan, província de 2 milhões de hectares no Norte da China, cerca de 52% das terras irrigadas são servidas por poços tubulares. Os dados de controle da superfície dos lençóis freáticos relativos a 358 poços mostram que a superfície dos lençóis freáticos diminuiu de 0,75 a 3,68 metros entre 1975 e 1987.
Na bacia do rio Fuyang do Norte da China, a superfície dos lençóis freáticos caiu de 8 para 50 metros nos últimos 30 anos, à medida que foi aumentando o número de agricultores que recorreram à irrigação a partir de lençóis freáticos para compensar o decréscimo das águas de superfície disponíveis.
Em muitas zonas da Índia e do Paquistão, as superfícies dos lençóis freáticos estão a descer à taxa de 2 a 3 metros por ano, devido ao número crescente de poços de irrigação – cerca de um milhão por ano.
Em dois Punjabs, Haryana e Rajasthan Ocidental, a salinidade é a principal conseqüência da utilização excessiva dos lençóis freáticos. No Norte de Gujarat e no Rajasthan Meridional, o problema é a contaminação pelo flúor.
Todos estes problemas enfraquecem a capacidade destes países de fornecerem alimentos à sua população. Alguns peritos prevêem que a exaustão dos lençóis freáticos pode pôr em risco 25% das colheitas da Índia.
Não há solução simples
O estudo sobre os lençóis freáticos do IWMI incide na problemática da pobreza e tenta compreender e resolver o leque de problemas resultantes dos níveis dos lençóis freáticos. Em zonas de lençóis freáticos abundantes, os cientistas do IWMI estão a examinar em que medida as aglomerações e as aldeias se podem organizar para fazerem a gestão e a partilha ideais da água de irrigação. Em zonas que sofrem da exploração excessiva dos lençóis freáticos, o trabalho do IWMI procura definir o alcance do problema utilizando meios como a cartografia dos recursos dos lençóis freáticos e o desenvolvimento de novas abordagens para a gestão sustentável dos lençóis freáticos. Estas incluem a utilização combinada das águas subterrâneas e de superfície, a recolha de águas pluviais, a recarga dos lençóis freáticos, as instituições locais e a irrigação de precisão para uma utilização mais eficaz da água.
Água já rende mais que petróleo e gás
Jean-Marie Messier perdeu bilhões de euros ao transformar a maior empresa de abastecimento de água do mundo no conglomerado de entretenimento Vivendi Universal. Deveria ter ficado com a água. A falta de água potável no mundo a tornou mais valiosa do que o petróleo. O índice Bloomberg World Water Index, de 11 empresas do setor, registrou o rendimento anual de 35% desde 2003, em relação aos 29% das ações de petróleo e gás e aos 10% do índice Standard & Poor’s 500.
Do gestor de fundos de hedge T. Boone Pickens ao especialista em compras de empresas Guy Hands, os maiores investidores do mundo estão escolhendo a água como o produto básico que poderá se valorizar mais nas próximas décadas. As Nações Unidas calculam que até 2050, mais de 2 bilhões de pessoas de 48 países sofrerão com a escassez de água.
"Há apenas uma direção para os preços da água na atualidade, e é para cima", diz Hans Peter Portner, que administra o Water Fund, de US$ 2,9 bilhões, na Pictet Asset Management, de Genebra. O fundo aumentou 26% no ano passado, e Portner prevê rentabilidade anual da água de 8% até 2020.
Jeffrey Immelt, presidente da General Electric (GE), diz que a "escassez" de água potável em todo o mundo aumentará mais que o dobro a receita a ser obtida com o tratamento e a purificação de águas, para US$ 5 bilhões até 2010. "Este será um mercado grande e em expansão por um longo período", à medida que os governos lutam para levar água para 4 bilhões de pessoas que moram nas áreas de grave escassez, disse Immelt na assembléia anual da empresa em Filadélfia, EUA, em abril.
Albert Frère, o homem mais rico da Bélgica, tem investimentos de € 2,7 bilhões (US$ 3,4 bilhões) em água e energia por meio de cota mantida na Suez, segunda proprietária mundial de empresas de água, depois da Veolia Environnement, separada pela Vivendi em 2000.
Os indícios do abastecimento de água cada vez menores são evidentes em todo o mundo. A maioria dos restaurantes já não estão oferecendo um copo de água grátis aos seus comensais e as cidades restringem o seu uso em piscinas privadas e jardins. Mais de 98% da água do mundo é salgada e a maior parte do restante está congelada nos pólos.
Os lagos, rios e riachos do mundo representam só 1% da água doce. Os cientistas dizem que qualquer redução dos calotas polares agravaria o problema do abastecimento ao elevar os níveis da água salgada. "A qualidade da água, a sua disponibilidade e as disputas em torno dos recursos aqüíferos vão piorar", disse Peter Gleick, presidente do Pacific Institute, grupo de pesquisa de Oakland, na Califórnia, em entrevista concedida por telefone.
O custo da água geralmente é estabelecido pelas agências governamentais e pelas autoridades locais do setor. A água não é cotada em bolsas de valores. Pictet monitora as tendências dos preços na Califórnia, o estado mais populoso dos Estados Unidos, país em que os aumentos ficaram em média 6,3% ao ano entre 1989 e 2005. O petróleo aumentou em média nesse período, segundo contratos futuros negociados na Bolsa de Mercadorias de Nova York.
Desafios do Fórum das Águas de Kyoto
As atenções internacionais da área ambiental e de saneamento estavam voltadas, entre 16 e 23 de março, para o III Fórum Mundial das Águas, que foi realizado em Kyoto, no Japão. O Fórum deu seqüência a uma série de encontros promovidos pelo sistema da Organização das Nações Unidas (ONU), no sentido de responder aos enormes desafios representados pela crítica situação mundial dos recursos hídricos.
Os 11 principais desafios, que deram o tom das discussões em Kyoto, foram reunidos pelo Programa Mundial de Avaliação dos Recursos Hídricos (WWAP em inglês), que engloba os esforços de 23 órgãos do Sistema das Nações Unidas. O Programa publicou oficialmente, durante o Fórum de Kyoto, o primeiro Informe Mundial sobre o Desenvolvimento dos Recursos Hídricos, com dados globais sobre a situação da água. Em resumo são estes os 11 grandes desafios, indicados pelo WWAP:
Atender às necessidades básicas - Trata-se do grande desafio, o de permitir o acesso à água doce, a toda população mundial, em quantidade e qualidade suficientes para atender às necessidades básicas dos seres humanos. O Informe Mundial do WWAP vai indicar que, na pior das hipóteses, nada menos do que 7 bilhões de pessoas, ou 80% da população mundial, abrangendo 60 países, sofrerão com a falta de água ou com problemas de saneamento até metade do século 21. O melhor cenário previsto indica que 2 bilhões de pessoas, em 48 países, sofrerão com a escassez de água em meados desse século. Hoje já são 2 bilhões de pessoas com escassez de águas e problemas de saneamento básico.
Assegurar o abastecimento de alimentos - Outro grande desafio, considerando que o aumento da população mundial vai implicar em uso ainda maior de água doce para a produção de alimentos. Atualmente 70% das águas são usadas na irrigação. As estimativas são de que a produção de uma tonelada de grãos demanda 1.000 toneladas de água. Em 2050 a população mundial será de cerca de 9 bilhões de habitantes, três a mais do que os atuais 6 bilhões.
Proteger os ecossistemas - Trata-se de garantir que a retirada de água dos rios e dos lençóis freáticos, para atender as necessidades humanas, não implique em prejuízos para os ecossistemas e, portanto, para a complexa teia biológica no planeta. As espécies animais e vegetais também necessitam de água para sobreviver e se multiplicar.
Compartilhamento dos recursos hídricos - O desafio é o de assegurar um sistema de gestão que dê respostas adequadas aos múltiplos conflitos associados ao uso da água, envolvendo os diferentes tipos de usuários.
Gestão dos riscos - O sistema de gestão também deve dar resposta apropriada aos diversos riscos ligados aos recursos hídricos, como a erosão, as inundações, a contaminação, as secas e as tempestades. É um desafio que implica o uso eficiente da ciência e da tecnologia em benefício da gestão adequada das águas.
A valorização das águas - É uma questão polêmica, pois se trata de dar um valor econômico a um bem natural. Mas existe uma tendência internacional de pagamento pelo uso da água, exatamente como forma de garantir o seu uso racional e sustentável. O desafio é fazer com que a valorização da água nestes termos não agrave a exclusão de amplos setores da população aos serviços de água potável.
Gestão integral da água - Trata-se das formas de gestão da água no âmbito público, garantindo-se a ampla participação popular nas decisões e a observação a princípios como a descentralização, a gestão por bacias, a cooperação e a solidariedade.
Melhorar o conhecimento básico - O desafio é a construção de sistemas de informação cada vez mais eficientes, dinâmicos e ágeis sobre os recursos hídricos. Os sistemas de informação construídos dessa forma podem ajudar, por exemplo, a prevenir episódios que coloquem em risco o abastecimento público de água.
Água para uso energético - É uma questão sensível. Hoje cerca de 2 bilhões de pessoas não têm acesso a energia elétrica confiável. São pessoas que moram nas regiões do planeta onde a população deve crescer ainda mais nos próximos anos. E as fontes hidráulicas continuam sendo muito importantes para a produção energética. O desafio é fazer com que os interesses do setor elétrico não sejam colocados em primeiro plano, em detrimento de outros usos da água essenciais para a comunidade humana.
Água para uso industrial - Atualmente as indústrias consomem cerca de 22% da água doce do planeta. O desafio é garantir o acesso das indústrias à água, mas sem que isso signifique o comprometimento do uso dos recursos hídricos para abastecimento público. Do mesmo modo, é fundamental que a água usada pelas indústrias retorne em condições adequadas para a natureza. Por isso é importante o avanço do reuso da água.
Água para as cidades - A urbanização é irreversível. Em 2030 cerca de 60% da população mundial estarão morando nas cidades, onde o consumo de água é maior. Como evitar um apartheid hídrico nas cidades, e sobretudo nas áreas metropolitanas?
Estes são os grandes desafios, que darão o tom dos debates em Kyoto. Em termos da participação dos representantes governamentais no Fórum Mundial da Água, três principais preocupações tomarão conta das atenções dos delegados. São preocupações indicadas na Conferência Internacional da Água, realizada em nível ministerial, em Bonn, Alemanha, em dezembro de 2001. São elas:
Governança - Trata-se da construção do sistema de gestão que responda aos desafios associados aos recursos hídricos. A responsabilidade pela gestão é dos governos, mas os diversos setores sociais são convocados a participar. A participação privada é considerada importante, mas desde que não signifique a privatização dos recursos hídricos, conforme indicou a Declaração de Bonn.
Financiamento - Trata-se da discussão das formas de financiamento das obras necessárias nas áreas de recursos hídricos e financiamento. O papel dos organismos multilaterais, do setor público e privado.
Cooperação internacional - Trata-se do debate sobre como deve ser a cooperação internacional para assegurar o uso sustentável dos recursos hídricos. Envolve a cooperação científica, tecnológica e em termos de gestão e financiamento.
Uma preocupação especial, indicada na Conferência de Bonn, também está presente em Kyoto. Trata-se de como garantir uma maior participação das mulheres na gestão das águas, como meio de se alcançar o uso sustentável dos recursos hídricos.
Em termos gerais, o Fórum Mundial das Águas, em Kyoto, vei seguir o roteiro dos eventos do sistema das Nações Unidas. Houveram encontros oficiais, das delegações governamentais, e também eventos promovidos pela sociedade civil. É de se lembrar que, de forma paralela ao Fórum de Kyoto, foram promovidos no Brasil (Cotia, SP), Florença (Itália) e Nova York fóruns das águas alternativos, realizados pela sociedade civil. São os Fórum Sociais das Águas, uma atividade impulsionada pelo "espírito do Fórum Social Mundial" de Porto Alegre. Não por acaso, o Fórum de Kyoto vem sendo caracterizado pelos organizadores dos fóruns alternativos como a "Davos das Águas", pela forte presença empresarial no evento sediado na cidade japonesa.
Tudo indica, em resumo, que o Fórum de Kyoto foi, literalmente, um "divisor de águas" no debate mundial sobre o estado e o futuro dos recursos hídricos. A exemplo do que aconteceu com o debate, na mesma cidade japonesa, em 1997, sobre a Convenção das Mudanças Climáticas e que resultou no controverso Protocolo de Kyoto, hoje fonte de muita polêmica na agenda ambiental mundial.
A água e os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio
Como afirmou Nitin Desai, secretário-geral da Cúpula Mundial sobre Desenvolvimento Sustentável, não é possível melhorar a difícil situação dos pobres do mundo sem fazer alguma coisa em relação à qualidade da base de recursos de que dependem: as terras e os recursos hídricos. Melhorar a utilização dos recursos hídricos é decisivo para todas as outras dimensões do desenvolvimento sustentável. Para o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), a água é um ponto de partida catalítico nos esforços para ajudar os países em desenvolvimento na luta contra a fome e a pobreza, na salvaguarda da saúde humana, na redução da mortalidade infantil e na gestão e proteção dos recursos naturais.
Durante a Conferência do Milênio, promovida pela Organização das Nações Unidas em setembro de 2000, 191 países — a maioria dos quais representados na conferência por seus chefes de estado ou governo — subscreveram a Declaração do Milênio, que estabeleceu um conjunto de objetivos para o desenvolvimento e a erradicação da pobreza no mundo, os chamados Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM). Os oitos objetivos fixados pela Conferência do Milênio foram:
* A erradicação da pobreza e da fome
* A universalização do acesso à educação primária
* A promoção da igualdade entre os gêneros
* A redução da mortalidade infantil
* A melhoria da saúde materna
* O combate à AIDS, malária e outras doenças.
* A promoção da sustentabilidade ambiental
* O desenvolvimento de parcerias para o desenvolvimento
Dada esta lista de oito objetivos internacionais comuns, 18 metas e mais de 40 indicadores foram definidos, tendo em vista possibilitar entendimento e avaliações uniformes dos ODM, nos níveis global, regional e nacional. A meta 10 visa reduzir pela metade, até 2015, a parcela da população sem acesso seguro e duradouro a água potável.
“Nenhuma medida poderia contribuir mais para reduzir a incidência de doenças e salvar vidas no mundo em desenvolvimento do que fornecer água potável e saneamento adequado a todos”. Essa afirmação do secretário-geral da ONU, Kofi Annan, define de forma categórica o papel fundamental que a água e o saneamento desempenham na erradicação da pobreza e para assegurar o desenvolvimento humano sustentável.
No contexto dos ODM, a água desempenha um papel central devido à sua importância para promover o crescimento econômico e reduzir a pobreza, propiciar segurança alimentar, melhorar as condições da saúde ambiental e proteger os ecossistemas. A expansão do acesso ao fornecimento doméstico de água e aos serviços de saneamento contribuirá para o alcance de vários Objetivos de Desenvolvimento do Milênio, visto que a água está intrinsecamente ligada a eles. É difícil imaginar como pode haver avanços significativos sem primeiro assegurar que as pessoas tenham um fornecimento duradouro e confiável de água e instalações sanitárias adequadas.
O acesso à água e saneamento é uma questão ética
A crise da água vem aumentando, mesmo com alguns avanços obtidos para atingir os objetivos estabelecidos em 2000. O Projeto do Milênio das Nações Unidas foi estabelecido em 2002 para desenvolver um plano de ação que habilite os países em desenvolvimento a alcançar os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio e a reverter o massacre da pobreza, da fome e das doenças que atinge bilhões de pessoas. As equipes das dez forças-tarefas do Projeto Milênio, congregando 265 especialistas de todo o mundo, foram desafiadas a diagnosticar os principais impedimentos ao alcance dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio e a apresentar recomendações de como superar os obstáculos, colocando as nações no caminho certo para atingir as metas até 2015.
No início de 2005, a força-tarefa sobre Água e Saneamento recomendou ações críticas para minorar a crise global de água e saneamento e promover a gestão adequada dos recursos aquáticos. Entre essas ações estão:
Governos nacionais e outras partes envolvidas devem assumir o compromisso de definir a crise do saneamento como prioridade máxima em suas agendas. Investimentos em água e saneamento devem ser ampliados e devem focalizar a provisão sustentável de serviços, em vez de apenas construir instalações.
Governos e agências doadoras devem fortalecer as comunidades locais com a autoridade, recursos e capacidade profissional necessários para a gestão do fornecimento de água e a provisão de serviços de saneamento.
Dentro do contexto das estratégias nacionais de redução da pobreza, os países devem elaborar planos coerentes de desenvolvimento e gestão dos recursos hídricos.
A inovação deve ser incentivada para acelerar o progresso, e assim alcançar diversos Objetivos de Desenvolvimento simultaneamente. Por exemplo, o desenvolvimento de novas formas de reutilização da água recuperada na agricultura poderia aumentar o rendimento das colheitas e reduzir a fome, melhorando também o saneamento.
Mecanismos de coordenação devem ser implementados para melhorar e avaliar o impacto das atividades financiadas por agências internacionais no âmbito nacional.
Estas recomendações mostram claramente que, após cinco anos, a ONU continua conclamando os países a assumir o acesso seguro à água potável como prioridade máxima em suas agendas. O mais grave é o fato de que as metas estabelecidas para 2015 não visam a eliminar, e sim reduzir, a tremenda injustiça social da falta de acesso seguro à água e ao saneamento básico para todos os habitantes da Terra. De acordo com a força-tarefa, expandir a cobertura de água e saneamento não requer somas colossais de dinheiro (10), nem descobertas científicas inovadoras. Quatro em cada dez pessoas no mundo não têm acesso nem a uma simples latrina de fossa não-asséptica e são obrigadas a defecar a céu aberto. Obviamente, o conhecimento, as ferramentas e os recursos financeiros estão disponíveis para pôr fim a esta infâmia.
Como afirma Mohamed Bouguerra (11), o fornecimento de água para a humanidade articula-se estreitamente às prioridades estabelecidas pelos homens. Os usos que damos à água refletem, no fim das contas, os nossos valores mais profundos. “A água é, primeiramente, uma questão política e ética. Nenhuma outra questão merece mais atenção por parte da humanidade. Ela determina a paz universal e o futuro de todos os seres vivos”. A posição de Wally N'Dow (12) , para quem grande parte dos conflitos políticos e sociais no futuro deixarão de ter como causa o petróleo e serão provocados pelas disputas em torno da água, é hoje praticamente um consenso.
O alerta feito por Bouguerra não pode ser ignorado. Necessitamos, hoje, da formulação de uma política global para a água, fundada sobre o plano da ética, e que sirva de guia para definir uma partilha equilibrada dos recursos. “Dessa maneira se poria fim aos embates indignos que os detentores do poder e alguns grupos de pressão exercem sobre este recurso. Se a política da água precisa ser integrada à viabilidade econômica, não é menos indispensável que ela englobe também a solidariedade social, a cooperação com os países mais desprovidos, a responsabilidade ecológica e a utilização racional desse recurso, para não comprometer as necessidades das gerações atuais e futuras e dos demais seres vivos que partilham conosco a água do globo”.
O Brasil na mira
Por iniciativa da Rede Brasileira pela Integração dos Povos (Rebrip) foi lançada, num debate em São Paulo, a cartilha “Água, um direito ameaçado”. O evento marcou o início de um movimento mais amplo. “Creio ser possível dar-lhe dimensão nacional, multiplicá-lo em várias capitais e promover também atos simbólicos, com presença do mundo da cultura”, disse o sociólogo Luís Fernando Garzón, integrante do ATTAC, membro do grupo de trabalho sobre Serviços da Rebrip e um dos articuladores da campanha.
A cartilha mostra que, ao tratarem a água como simples mercadoria, o Banco Mundial e o FMI favorecem políticas que resultam em exclusão. No ano de 2000, por exemplo, nada menos que doze, dos 40 empréstimos concedidos pelo Fundo Monetário a diversos países continham exigências quanto à privatização de serviços públicos de água.
O texto aponta também os riscos à soberania dos países causados por acordos comerciais como o Nafta e a ALCA, que dão sinal verde para que empresas transacionais tenham livre acesso às reservas de água dos signatários. No caso do Brasil, há perigo iminente. Além de concentrar 12% da água doce superficial do mundo, o país tem acesso a parte do Aqüífero Guarani -- a maior reserva subterrânea de água potável do planeta, que se estende pela Argentina, Paraguai e Uruguai.
O material da Rebrip expõe ainda o fracasso de experiências de privatização em outros países. Há destaque, por exemplo, para o sistema pré-pago de água implantado no Reino Unido e África do Sul, já em teste no Brasil. Ele funciona como os telefones celulares alimentados por cartões, o que anula, na prática, o princípio jurídico segundo o qual não pode haver interrupção no fornecimento de serviços essenciais. Quando a cota de água paga pelo usuário se esgota, o suprimento é cortado automaticamente. Na maior parte dos lugares onde o sistema foi introduzido, a população acabou sofrendo com a falta de água e proliferação de doenças, por não ter dinheiro para comprar os cartões.
DADOS SOBRE A ÁGUA:
· Do total de água no mundo, 97,6% é salgada e apenas 2,4% é doce; 0,8% é considerada potável;
· A quantidade de água doce produzida pelo ciclo hidrológico é a mesma de 1950 e deverá ser a mesma em 2050, quando o consumo de água atingirá o chamado ponto de equilíbrio, ou seja sua quantidade será suficiente apenas para atender às necessidades da população; se houver desperdício, vai faltar;
· Em 2050, 4,2 bilhões de pessoas (mais de 45% do total mundial) estarão vivendo com menos de 50 litros de água por dia para suas necessidades básicas;
· Hoje, 1,1 bilhão de pessoas já não têm acesso a água limpa;
· Atualmente, 54% das reservas de água doce são utilizadas por ano; em 2025, a taxa deve subir para 70%, só com o crescimento populacional;
· Nos países em desenvolvimento, até 95% dos esgotos e 70% dos rejeitos industriais são simplesmente despejados em cursos d'água sem tratamento;
· Apenas 50% do esgoto paulistano é tratado, de acordo com o Instituto Ambiental Vidágua, de Bauru.
Fontes: ONU, Unicef, Greenpeace, Unesco, SOS Mata Atlântica, Sabesp e Cetesb.
· 70% do nosso corpo composto por água, coincidentemente, a mesma composição do nosso planeta.
· 1 kg de agrotóxico é suficiente para contaminar bilhão de litros de água.
· Entre 1900 e 1990 a demanda mundial de água aumentou em seis vezes.
· Cerca de 80% das doenças e 30% dos óbitos no mundo são causados por águas contaminadas.
Fonte: Cartilha Agua – Governo do Pará 24/1/2006 11:28 Page 20