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As bases da filosofia cristã
A difusão do cristianismo, a partir do século I, é o pano de fundo para discussão entre fé e razão que mobilizou muitos filósofos a partir de então. Temos que considerar dois fatores que nos ajudam a entender esse processo:
1) Universalidade do cristianismo. A religião cristã, diferente de outras expressões religiosas, tinha o propósito de se tornar universal. Enquanto as religiões costumavam se referir a um povo e a uma cultura, o cristianismo queria converter todos os povos. Esse propósito tem sua expressão nas pregações de Paulo, como podemos notar em Gálatas 3, 28: “Desse modo não existe diferença entre judeus e não judeus, entre escravos e pessoas livres, entre homens e mulheres: todos vocês são um só por estarem unidos com Cristo Jesus.”
2) Cosmopolitismo de Alexandria. É em Alexandria, no século I a.C., que encontramos uma aproximação entre o judaísmo e a cultura grega que dará origem a uma filosofia cristã. Romanos, egípcios, judeus e gregos conviviam com tolerância religiosa.
Fílon de Alexandria
É Alexandria que nasceu Fílon, conhecido como “Fílon, o judeu”, que faz uma primeira aproximação entre a filosofia grega e o judaísmo. Tudo o que se sabe sobre sua vida é aquilo que foi trazido pela obra do historiador Josefo. Embora não saibamos muito sobre sua vida, além de que era possivelmente integrante de uma rica família judaica, a obra de Fílon, cerca de quarenta tratados, trouxeram uma grande contribuição para o pensamento dos cristãos posteriores.
1) Aproximação entre judaísmo e filosofia grega.
Em seus comentários sobre o Pentateuco (os cinco livros iniciais do Antigo Testamento), há uma tentativa de aproximação entre judaísmo e filosofia grega a partir de uma influência que ele considera, mas nunca comprovada por documentos históricos, ter sido exercida pelo Antigo Testamento e pela tradição mosaica sobre os filósofos. Ele não via distinção entre as preocupações filosóficas com o ser e a physis da Revelação cultivada pela tradição judaica.
O historiador Werner Jaeger salienta que não era o objetivo de Fílon converter os gregos da importância da tradição mosaica. Ele se dirigia aos judeus mostrando a importância do pensamento filosófico. Vejamos:
“Para nós, Fílon de Alexandria é, evidentemente, o protótipo do filósofo judeu que absorveu toda a tradição grega e se serve do seu rico vocabulário conceptual e dos seus meios literários para provar o seu ponto de vista, não aos gregos, mas aos seus próprios compatriotas judeus. Isso é importante, visto que demonstra que toda a compreensão, mesmo entre gente não-grega, precisava do meio intelectual do pensamento grego e das suas categorias”( JAEGER, 1991, p. 47-48).
Fé e Razão
Percebemos, a partir desse fragmento, que para Fílon já havia um esboço da tentativa de conciliar fé e razão. Para ele, a Teologia era superior à filosofia, mas a filosofia era indispensável para que não se interpretasse as escrituras de forma literal. A respeito da Bíblia, ele recorre à noção de alegoria: para Fílon, as Escrituras teriam um sentido literal e um sentido oculto. Os personagens e situações que são compreendidos por uma leitura mais superficial escondem significados filosóficos em vários níveis. Para estar apto para essa leitura alegórica das Escrituras, a filosofia era indispensável. Por isso, Fílon considera os filósofos como inferiores aos profetas: para ele, a filosofia não consegue alcançar a perfeição de Moisés e, assim, não optava por uma filosofia em detrimento da outra, pois todas as doutrinas tendiam à imperfeição.
Ele diz:
“Como as ciências sobre as quais se baseia a cultura geral contribuem para o aprendizado da filosofia, assim também a filosofia contribui para a aquisição da sapiência. De fato, a filosofia é o esforço para alcançar a sapiência, e a sapiência é a ciência das coisas divinas e humanas e das causas destas. Portanto, como a cultura geral é serva da filosofia, assim também a filosofia é serva da sapiência” (FILON, De congressu eruditionis gratia. Apud. REALE. G., História da Filosofia Grega e Romana, p. 232).
Logos de Deus
Podemos perceber que, para Fílon, há uma distinção entre a atividade de filosofar e a “sapiência”, noção que talvez ele tenha desenvolvido a partir de Aristóteles. A sabedoria, para ele, procede do Logos Divino. O Logos, um princípio a partir do qual Deus opera no mundo, pode ser entendido como:
* Uma realidade incorpórea;
*Tem um aspecto imanente, pois o mundo sensível é criado a partir dele;
* Pode ser entendido como tendo a função de reunir os poderes de Deus, inúmeras expressões da sua atividade;
* Também pode ser entendido como a fonte dos poderes ilimitados de Deus; (Fílon cita dois: O poder criativo e o poder régio);
* Tem o sentido de “Palavra de Deus”, no sentido criador que aparece no Evangelho de João. Nesse sentido, foi apropriado pelos primeiros cristãos como uma prefiguração de Cristo, ou seja, Cristo seria o Logos de Deus;
* Tem um sentido ético como “Palavra de Deus que guia para o bem”;
* Por fim, ele entende o Logos como um cosmo inteligível que Deus cria em sua mente para, a partir dela, criar a matéria, ou seja, o mundo físico. Nesse sentido, ele concilia a noção de “mundo das ideias” de Platão ao pensamento religioso: aquilo que Platão se referiu como “ideias”, para Filon correspondia a pensamentos de Deus.
Antropologia de Fílon
Novamente, em sua concepção de humano, Fílon concilia o pensamento platônico ao pensamento religioso: se para Platão havia a distinção entre corpo, Fílon acrescenta uma terceira dimensão ao humano, a dimensão espiritual.
A alma humana corresponderia ao intelecto, material, terreno e corruptível. A alma humana não era imortal nessa concepção, como era Platão. Imortal é o Espírito (pneuma), conferido por Deus e que representa, portanto, o vínculo entre o humano e o divino. A partir dessa divisão, compreende-se que a vida humana teria três possibilidades: uma dimensão física/animal, referente ao corpo; uma dimensão racional, referente à capacidade de pensar da alma-intelecto; uma dimensão espiritual, referente à possibilidade de a alma humana viver segundo o Espírito.
Com essa terceira dimensão, a Espiritual, Fílon introduz a moral como parte da filosofia e da religião. A vida feliz, para ele, pode ser pensada a partir da figura de Abraão durante seu exílio: a ideia da realização humana está vinculada a uma espécie de “itinerário para Deus”, ideia que será desenvolvida por Santo Agostinho. O homem precisa, nesse sentido, transcender a si mesmo para se dedicar a Deus, fonte de tudo o que possui.
Créditos da imagem: Philon
JAEGER, WERNER. Cristianismo primitivo e paideia grega. Lisboa: Edições 70, 1991.
NASCIMENTO, Dax. “Fílon de Alexandria e a Tradição filosófica”. Mετανόια, n. 5, São João Del-Rei: UFSJ, 2003, p.55-80.
REALE, Giovanni. “Filo de Alexandria e a „filosofia mosaica‟”. História da Filosofia Grega e Romana, vol. VII- Renascimento do Platonismo e do Pitagorismo, segunda parte. São Paulo: Edições Loyola, 2008.
Por Wigvan Pereira
Graduado em Filosofia