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“Filosofar é procurar, é afirmar que há algo a ver e a dizer” (Merleau-Ponty).
Introdução
Ninguém escapa da Filosofia. Mais dia, menos dia e o ser humano acaba deparando com o que Jaspers denomina de “questões fundamentais da vida”. Nessa hora, as ciências particulares emudecem. A mera opinião, alheia aos “porquês” do homem e da mulher, não dá uma palavra sequer. A Filosofia, ao contrário, “procura” e busca “ver” para ter algo a dizer.
No mais, se é verdade que o “humano” é obra da educação, também é certo que o saber filosófico pode contribuir bastante para este processo. Mas, muitos insistem em que a Filosofia é “incompatível” com a formação oferecida em nível de educação básica. Dentre inúmeros argumentos que “sustentam” essa propalada “incompatibilidade”, no mínimo dois são muito interessantes: o do “despreparo” e o da “inaptidão” dos estudantes desse período da educação formal.
Tendo presente o fato de ser corriqueiro esse tipo de ocorrência, o presente artigo atém-se a refletir sobre esses argumentos, ensaiando ligeira discussão sobre o saber filosófico e a cidadania. Antes, porém, olha a história e nota que a “exclusão” da Filosofia da educação básica brasileira não é coisa recente, mas que se arrasta desde o descobrimento (?) do Brasil.
O vai-e-vem da filosofia no currículo da educação básica
A Filosofia sempre foi tratada no âmbito da educação básica brasileira como produto requintado, acessível à elite. Decantada nos discursos oficiais, mas maltratada na prática educativa, sua história é marcada pela exclusão. Já no período jesuítico, entre 1553 e 1758, só os colonos brancos podiam estudá-la. Enquanto isso, índios, negros, mestiços e pobres recebiam uma educação catequético-religiosa de segunda ordem. A partir daí, as “re-formas” havidas no ensino passarão a responder pelo seu constante vai-e-vem n currículo escolar.
Em 1891, por exemplo, Benjamim Constant não a privilegiou em sua reforma educacional. Já em 1901 a Reforma Epitácio Pessoa introduziu a disciplina de lógica no último ano do ensino secundário. A Reforma Rivadávia, de1991, nem se referiu à Filosofia. Realizada em 1915, a Reforma Maxiamiliano previu cursos facultativos de lógica e história da filosofia, mas esses nunca chegaram a se concretizar. Com a Reforma Rocha Vaz, em 1925, ocorrida sob o clima das idéias liberais, a Filosofia reapareceu como disciplina obrigatória no quinto e no sexto anos do ensino secundário. Em 1932, a Reforma Francisco Campos dividiu o ensino secundário em ciclos: o fundamental e o complementar, com cinco e dois anos respectivamente, sendo a Filosofia introduzida apenas no currículo do segundo ciclo.
De 1942 a 1958 a Filosofia teve seus programas constantemente alterados. Em 1961, ano em que tem início a vigência da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de número 4.024, por não atender a objetivos burocrático-tecnicistas da nova concepção de educação, a Filosofia é excluída da educação básica. Em 1969, quando esse expurgo é regulamentado, atendendo a princípios de acordos celebrados entre Brasil e Estados Unidos, disciplinas como Educação Moral e Cívica passam a ocupar o lugar da Filosofia.
Até 1980 a Filosofia não se fez presente na educação básica, salvo honrosas exceções. De 1985 para cá, estão acontecendo ensaios diversos de introdução da Filosofia nos hoje ensino fundamental e médio. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, de 1996, previu genericamente a volta da Filosofia, ao menos no ensino médio. Recentemente, o Ministério da Educação, a Câmara dos Deputados e o Senado Federal emitiram documentos nos quais estabelecem a obrigatoriedade do ensino de Filosofia e de Sociologia no ensino médio. Vê-la efetivamente implementada e contribuindo para a constituição de uma cultura filosófica no âmbito da educação formal ainda parece ser um desafio.
Despreparo? Inaptidão?
No que se refere à Filosofia, é como tragédia que a história tem se repetido. Enquanto uns acreditam que a Filosofia na educação básica não tem a mínima afinidade com os estudantes brasileiros, outros entendem que os próprios estudantes nada fazem por merecê-la. O que se diz é o seguinte: “Os estudantes da educação básica brasileira não muito fracos e não estão preparados para a Filosofia”.
À parte o absurdo dessa afirmação, aqui é caso de se perguntar: O que é estar preparado para a Filosofia? Certamente é considerado “preparado” para o saber filosófico aquele indivíduo que freqüentou ótimos colégios, pôde receber uma esmerada educação familiar e social na fase pré-escolar da vida.
Visão curiosa essa do “despreparo”, porquanto é sabido que o sistema educacional brasileiro, como é próprio também ao capitalismo, sempre manteve uma escola para a elite e outra para as camadas populares da sociedade. O argumento do “despreparo” serve apenas para reforçar esse tipo deplorável de elitismo.
Ao argumentar que “os estudantes da educação básica são muito fracos”, bastando isso para subtrair-lhes o saber filosófico, os que são contra a Filosofia na educação básica mostram a fragilidade desse tipo de argumento. Não serão os mais “fracos” os que mais precisam robustecer os conteúdos curriculares da educação escolar que recebem? Se a escola não se dedicar a educar os que não sabem, a quem ela se dedicará. Aliás, não é justamente a existência dos que não sabem o que justifica a existência da escola e dos professores?
Não é por conta de uma pretensa “carência cultural”, idéia que, aliás, expressa um preconceito deplorável, que o Estado e as instituições de ensino estão livres de ministrar a Filosofia aos estudantes da educação básica.
Quem está em sala de aula sabe o quanto é urgente despertar no estudante a criatividade e a criticidade necessária para a elaboração de uma representação conseqüente do mundo, da sociedade e da vida humana no mundo. Para tanto, torna-se decisiva a contribuição da Filosofia. Paradoxalmente, no entanto, há entre nós quem ainda espera que o estudante da educação básica “se prepare” para depois aprender a filosofar.
Outro argumento que se ouve com freqüência é o da “inaptidão” desses estudantes para a Filosofia. Segundo essa idéia, poucos estariam “prontos” para a Filosofia, uma vez que a maioria “não nasceu” para tal tipo de saber. Platão era adepto dessa idéia. Nesse ponto, com certeza, o discípulo de Sócrates já está superado. Entretanto, a falsa idéia de que o saber filosófico destina-se a “mentes especiais”, pelo que se vê, ainda sobrevive.
Essa “prontidão” para a Filosofia seria algo uma vocação natural, um dom, uma aptidão interior de forte propensão individual para o pensar. Não creio, contudo, que isso exista, uma vez que se todos têm a capacidade de pensar, todos, então, podem se dedicar a compreender a Filosofia, assim como estudam Física, Química e disciplinas assemelhadas.
Saber filosófico e cidadania
Não se trata de despreparo, muito menos de inaptidão. O problema é outro e relaciona-se às condições reais de vida que se tem em nosso país. Se as pessoas vivessem condignamente, grande parte dos problemas educacionais estariam resolvidos, inclusive o que se refere ao acesso à Filosofia. Porém, a questão da vida digna, como condição de possibilidade do exercício da cidadania, ainda é um problema que o capitalismo vigente em nosso país não é capaz de resolver.
Ora, sem apropriar-se de bens materiais, simbólicos e sociais o homem e a mulher não se fazem plenamente humanos e têm sua dignidade comprometida, o que lhes coloca numa situação de não-cidadania. Ora, a Filosofia, bem socialmente produzido, parte do patrimônio simbólico que não pode ser tratado como um pertence estritamente pessoal, deve estar ao alcance de todos os estudantes, de todos os níveis. Mais: deve estar ao alcance de todos os cidadãos, uma vez que contribui para a educação que humaniza o homem e a mulher.
Dessa maneira, sob o saber filosófico nenhum preconceito pode abrigar-se. Mais: condicioná-lo a “pré-requisitos” como os aludidos anteriormente é perverter na raiz sua natureza de saber instituinte e que pode potencializar a liberdade. Ademais, apropriar-se da Filosofia é um direito inalienável de todo indivíduo, muito mais o será dos estudantes da educação básica de nosso país.
Conclusão
O vai-e-vem nas “re-formas” marca a história da Filosofia entre nós. Como massa de modelagem nas mãos do artista, a Filosofia tem ganhado as mais diferentes formas nos currículos nacionais, menos, contudo a de um saber socialmente produzido e fundamental. Como massa continua massa ao poder da forma provisória que lhe é impressa, o saber filosófico continua o que sempre foi: saber importante, mas a pleitear seu pleno lugar ao sol. Ou será que ainda haverá escolas e colégios que tentarão negar a obrigatoriedade da filosofia que agora ela alcançou por força de lei?
Referências bibliográficas
JASPERS, K. Introdução ao pensamento filosófico. São Paulo: Cultrix, 1971.
COSTA, M. C. V. O ensino de filosofia: revisando a história e as práticas curriculares. Educação e Realidade. Porto Alegre, n. 17, v. 1, jan.-jun. 1992, p. 49-58.
MERLEAU-PONTY, M. Elogio da filosofia. Lisboa: Idea Nova/Guimarães Editores, 1986.
Por Wilson Correia
Colunista Brasil Escola