PUBLICIDADE
O Espelho
Esse que em mim envelhece
assomou ao espelho
a tentar mostrar que sou eu.
Os outros de mim,
fingindo desconhecer a imagem,
deixaram-me a sós, perplexo,
com meu súbito reflexo.
A idade é isto: o peso da luz
com que nos vemos.
Os versos que abrem este artigo são de autoria de um dos maiores escritores da contemporaneidade, o moçambicano Mia Couto. Grande representante da literatura em língua portuguesa, Mia é quase uma unanimidade entre público e crítica, com uma obra que já conta com trinta títulos, entre eles prosa e poesia. Seus livros, marcados por uma linguagem inventiva e pouco usual, já são considerados um patrimônio da cultura lusófona, ganhando cada vez mais espaço entre os leitores brasileiros.
Mia Couto é pseudônimo de Antônio Emílio Leite Couto. A escolha desse nome aparentemente engraçado não foi feita por acaso: a paixão por gatos fez com que ainda menino pedisse aos pais que o tratassem assim. Sua escrita, marcada pela inovação estilística, transita por questões humanistas, revelando toda a sensibilidade do escritor que, em 2013, foi agraciado com o Prêmio Camões, considerado o maior prêmio concedido a autores da literatura em língua portuguesa. Grande conhecedor da história e da cultura de Moçambique, Mia é um escritor atento aos registros da fala de seu povo, transpondo para a escrita a oralidade aliada à inovação verbal, característica que o aproxima de Guimarães Rosa, uma de suas maiores influências literárias.
Para que você conheça um pouco mais da inventividade e maestria desse grande escritor, o Brasil Escola selecionou alguns dos melhores poemas de Mia Couto para que você possa experimentar seus versos e, assim, aventurar-se no que existe de melhor em sua prosa. Boa leitura!
Destino
à ternura pouca
me vou acostumando
enquanto me adio
servente de danos e enganos
vou perdendo morada
na súbita lentidão
de um destino
que me vai sendo escasso
conheço a minha morte
seu lugar esquivo
seu acontecer disperso
agora
que mais
me poderei vencer?
No livro “Raiz de Orvalho e Outros Poemas”
Espiral
No oculto do ventre,
o feto se explica como o Homem:
em si mesmo enrolado
para caber no que ainda vai ser.
Corpo ansiando ser barco,
água sonhando dormir,
colo em si mesmo encontrado.
Na espiral do feto,
o novelo do afeto
ensaia o seu primeiro infinito.
No livro “Tradutor de Chuvas”
Promessa de uma noite
cruzo as mãos
sobre as montanhas
um rio esvai-se
ao fogo do gesto
que inflamo
a lua eleva-se
na tua fronte
enquanto tateias a pedra
até ser flor
No livro “Raiz de orvalho e outros poemas”
Para Ti
Foi para ti
que desfolhei a chuva
para ti soltei o perfume da terra
toquei no nada
e para ti foi tudo
Para ti criei todas as palavras
e todas me faltaram
no minuto em que talhei
o sabor do sempre
Para ti dei voz
às minhas mãos
abri os gomos do tempo
assaltei o mundo
e pensei que tudo estava em nós
nesse doce engano
de tudo sermos donos
sem nada termos
simplesmente porque era de noite
e não dormíamos
eu descia em teu peito
para me procurar
e antes que a escuridão
nos cingisse a cintura
ficávamos nos olhos
vivendo de um só
amando de uma só vida
No livro “Raiz de Orvalho e Outros Poemas”
Horário do Fim
morre-se nada
quando chega a vez
é só um solavanco
na estrada por onde já não vamos
morre-se tudo
quando não é o justo momento
e não é nunca
esse momento
No livro “Raiz de Orvalho e Outros Poemas”
*A imagem que ilustra o artigo foi feita a partir de capas de livros do autor publicados pela Editora Companhia das Letras.
Por Luana Castro
Graduada em Letras