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A passagem 153e-154a do Teeteto é o início de uma crítica na qual Platão visa refutar o relativismo tanto do tipo protagoreano quanto heracliteano. Por intermédio de Sócrates, ele observa ao seu interlocutor que se nada existe em si, uma coisa seria a um estado intermediário entre quem percebe e o objeto percebido. A cada instante, tanto um quanto o outro se transformariam noutra coisa, não havendo, pois, a possibilidade de apreensão, atestando a vacuidade da determinação.
Com isso, Platão vê a necessidade de postular princípios que garantam a estabilidade dos seres, proporcionando-lhes a determinação. Fica implícita, portanto, a hipótese das Ideias que se aproximam do modelo parmenidiano e que será tratada em outros diálogos.
No Parmênides, por exemplo, é descrita a crítica feita ao problema da relação das Ideias com os seres sensíveis correspondentes. Na tentativa de solucionar a contradição que invade o discurso desde que ele se esforça por pensar o real, a teoria das Ideias funciona como uma purificação. A Ideia é marca característica do pensamento de identidade que se impõe a si mesma e que existe por si mesma enquanto identidade e sobre a qual se poderá fundar o conhecimento dos objetos que participam dela e conferindo estabilidade ao lógos. Platão observa que, mesmo nos seres que mudam o tempo todo (sensível), há a permanência de imobilidade suficiente para que se possa dele ter conhecimento e que tal imobilidade ou estabilidade não deriva do sensível, mas de um outro tipo de realidade, a inteligível.
Para poder pensar as identidades concretas, considera-se a existência das identidades ideais fora da contingência de toda relação: dizer que existe uma Grandeza ou uma Igualdade em si não é dizer outra coisa. Assim, o pensamento de identidade se deixa conduzir ao fato de que, para ele, a formulação do princípio de identidade não é necessariamente uma simples tautologia: a pura identidade em si, que um tal princípio exprime, guia, ao contrário, a teoria da reminiscência; na ocasião de inter-relações sensíveis, lembra-se da Ideia como identidade pura em si, numa situação que, por ela mesma, inclui um verdadeiro conteúdo.
As dificuldades que o problema da participação implica iniciam-se na passagem 130e-131c do Parmênides em que Sócrates exibe sua compreensão sobre as Ideias. Para ele, as coisas participam de Ideias que lhe conferem a possibilidade de denominação. Mas o velho Parmênides lhe questiona se é a Ideia toda ou somente uma parte dela que participa daquilo que participa, permanecendo una em cada um dos seres múltiplos. Se assim é, então, objeta-lhe o eleata, ela ficaria separada de si mesma, o que para Sócrates é um absurdo.
Tal crítica é apontada por alguns pesquisadores como sendo uma revisão que o próprio Platão faz de sua teoria, assim como um impulso para um novo desenvolvimento nos diálogos posteriores. A caracterização da teoria das Ideias, na primeira parte do Parmênides, permite reconhecer as posições colocadas pelos grandes diálogos. O dualismo ontológico é evocado através dos diferentes status daquilo que a República chamava de lugar sensível e lugar inteligível, em relação ao princípio de não contradição. Quando o sensível é o lugar da contradição, podendo a identidade mostrar-se aí ao mesmo tempo una e múltipla, semelhante e dissemelhante, o inteligível é, ao contrário, o lugar da não contradição. O pensamento de identidade que governa o lógos exclui a contradição e o semelhante em si não poderia ser mostrado dissemelhante.
Como, então, conciliar duas ordens de realidades distintas? Se o múltiplo sensível participa da Ideia, esta permanece una ou divide-se em partes distintas? Se ela se divide, não é mais ela mesma; se ela permanece una em cada objeto, ela é separada de si mesma.
Aristóteles lembra que o termo participação (methéxis) é propriamente platônico e que os pitagóricos definiam a existência das coisas pela imitação (mímesis) dos nomes. Esses dois termos apresentam-se como dois modos de representar-se a presença principal, no sensível, de uma ordem de realidade apreendida unicamente pela alma. Não poupando nenhuma crítica à sua própria teoria, e preocupado em eliminar antecipadamente as soluções falsas, Platão considera precisamente as duas possibilidades, opondo a elas, de maneira característica, o mesmo argumento derivado de um argumento conhecido sob o nome de “terceiro homem”. O raciocínio é o seguinte: se a Ideia é apenas o caráter comum de uma multiplicidade sensível, percebido por uma operação do espírito, é preciso explicar como o reconhecimento desse caráter comum, que reúne a Ideia e as coisas que dela participam, não dependem, por sua vez, de alguma Ideia superior, a única capaz de impor a todos esse mesmo caráter e assim por diante até o infinito. O argumento funciona de modo totalmente semelhante se, no lugar de uma methéxis, se considera a relação entre o sensível e o inteligível como uma mímesis: se as Ideias são os paradigmas, modelos que existem desde toda eternidade, e que as coisas são delas simples imagens, copiadas, ainda será preciso explicar como a Ideia e a coisa-imagem podem ser semelhantes entre elas e evocar para isso alguma Ideia superior e que cairá sob as mesmas críticas. O próprio Aristóteles, em sua Metafísica, critica Platão por ter concebido realidades inteligíveis separadas dos seres sensíveis (ideai) e por determinar que é pela participação que todas as coisas existem e que se nomeiam segundo as formas (eidesin).
Com efeito, o estagirita faz a distinção entre realidades inteligíveis, denominadas Ideias, e as formas que parecem ser o verdadeiro objeto da participação. Em um artigo que procura mapear a ocorrência dos termos eidos e Idea nos diálogos de Platão, Jean-François Pradou analisa as nuances que uma tal distinção pode provocar na interpretação dos textos de Platão. Segundo Pradou, o termo “Forma” referir-se-ia a características intrínsecas ou imanentes aos seres, que determinavam suas qualidades e proporcionariam uma certa resistência ao devir. É o que aparece, com suas figuras, classes, aspectos, etc. Já o termo Ideia seria a realidade inteligível e transcendente, alcançada somente pelo pensamento, que fundamenta as formas enquanto possibilidade de conhecimento, sendo, pois, causa dos seres sensíveis.
Voltando ao argumento do “terceiro homem”, que Platão considera verdadeiro, deve-se mostrar a distância entre Platão e seu discípulo. Não há razão nenhuma para diferenciar sentidos do ser quando se diz, por exemplo, que a grandeza é grande. Aristóteles diria que a mesma palavra ser remete a significações distintas, e que não se pode tomar no mesmo nível enunciados tão diferentes como uma simples predicação e uma definição de essência. Mas Platão, confiando do lógos assim como ele é regulado pelas normas da conversação dialética, nunca permite a abertura sobre uma reflexão do próprio status da linguagem que uma teoria da predicação pode constituir, e se recusa ainda mais a considerar qualquer possibilidade de polissemia. Pode-se levar a análise mais longe e sustentar que, em termos platônicos, o argumento do “terceiro homem” não é um erro, pelo absurdo da regressão ao infinito para onde ele mostra que conduz a contradição de uma identidade pensada fora da relação, mas que é preciso fazer entrar numa relação; a da methéxis, apenas ilustra à sua maneira o que a primeira hipótese do Parmênides mostrará, a saber, a incoerência de um pensamento de identidade estrito que, por força de querer separar o seu objeto da relação, chega a concebê-lo como pura ilimitação e, portanto, definitivamente, como inefável. O absurdo da regressão ao infinito, que tem como consequência a ilimitação de uma identidade indizível e, por isso, inexistente, foi muito bem concebida por Platão como um argumento dirigido contra o pensamento de identidade que sustentava a teoria das ideias; pleiteia, a contrario, o restabelecimento da relação, até entre as próprias ideias, pois através dela vêm a limitação e a possibilidade de dizer uma identidade que, determinada, seja realmente identidade enquanto tal.
A participação parece indispensável para salvar nosso pensamento do ser. Sem ela, a teoria das Ideias deve enfrentar um último argumento particularmente terrível. Quando se tiver, de fato, reconhecido a existência de duas ordens, separadas, de realidade, as coisas de cada ordem só poderão ter poder (dýnamis) entre as coisas da mesma ordem, e em nenhum caso sobre as da outra ordem. Mais ainda, sendo distintas as duas ordens, não só as coisas de uma não poderão ter influência sobre as coisas da outra, mas, pertencendo a uma ordem, não se poderá conhecer as realidades da outra ordem; o homem não poderá conhecer as coisas divinas e Deus não poderá conhecer as coisas humanas.
A primeira hipótese do Parmênides apresenta-se, de fato, como a demonstração pelo absurdo da impossibilidade, para a filosofia, de limitar-se a um estrito pensamento de identidade, quer dizer, a um pensamento que acreditaria precaver-se da contradição pela fuga para identidades que se poriam a si mesmas e seriam conhecidas por elas mesmas.
O princípio de identidade é, com efeito, aplicado aqui até ao absurdo, até esse limite que lhe tinha fixado Antístenes: a impossibilidade de uma coisa dizer outra além dela mesma, isto é, em termos aristotélicos, a impossibilidade da predicação. O raciocínio de antístenes baseava-se de maneira estrita sobre o princípio de identidade. Para ele, o único tipo de proposição legítima correspondia ao esquema: Sócrates é Sócrates. Dizer, por exemplo, que Sócrates é homem seria já dizer outra coisa que ele mesmo. O uno que Platão põe na primeira hipótese será analisado segundo um mesmo pensamento de identidade levado aos seus limites. A única proposição possível é: o uno é uno. Toda outra forma de atribuição é percebida como contraditória. O um será dito ilimitado, porque aí está a própria forma da indeterminação. Fora da tautologia, pois, fala-se apenas negativamente do um.
Uma passagem característica da crítica do pensamento de identidade ao qual corresponde a primeira hipótese é aquela onde se trata, precisamente, da identidade em si do uno. Diès vê aí uma espécie de truque de mágica verbal pelo qual Parmênides, tendo posto que a identidade não é unidade, substituiria a proposição que se segue naturalmente (a saber, ser idêntico não é ser uno), pela outra sofística (a saber, ser idêntico é não ser uno). Mas, de fato, Platão apoia-se simplesmente no fato de que o um e o mesmo diferem, quer dizer, que o mesmo é outro que o uno: são dois princípios distintos. Por conseguinte, quando se diz que o uno é o mesmo, ele torna-se outra coisa, o par do uno e do mesmo e, por conseguinte, é outro que ele mesmo. Aqui o princípio de identidade é levado até ao absurdo: nada se pode dizer do outro do um que ele mesmo. Assim, a impossibilidade colocada não se limita, pois, à natureza do um em si mesmo, e sim ao discurso. É característico que Platão não diga que, por tornar-se idêntico a si mesmo, o um se tornaria dois; ele diz simplesmente que não seria mais um consigo mesmo. Essa é a cisão da alteridade em si e o verdadeiro problema vai além da natureza do uno: é o problema de um discurso que, ao pôr uma identidade, diz alguma coisa de outra, porque ele se serve de um nome diferente. A identidade da qual se fala parece, pelo discurso, outra que ela mesma, pela virtude de uma contradição que Platão ilustra pela oposição do uno e do múltiplo e que repousa na possibilidade de poder enunciar vários nomes a propósito de uma mesma identidade. A não identidade consigo, que Platão afirma aqui do uno, poderia ter deduzido não importa de que outra identidade que não fosse o um.
Essa primeira hipótese conduz, assim, a uma aporia total: o uno não é um e não é; não tem nome, nem definição, não pode haver aí nem sensação, nem opinião, nem ciência. É, pois, o próprio tipo de pensamento pelo qual se buscou apreendê-lo que está totalmente posto de novo em questão. Parmênides não diz que do lógos se segue que o uno não é; ele diz, ao contrário, que é impossível que haja assim o uno – intervenção de um princípio de realidade que domina o princípio de identidade e, de resto, constitui uma heresia notável, na boca de Parmênides, em relação ao parmenidismo. Portanto, é preciso mudar o lógos, o que será feito somente no Sofista.
Por João Francisco P. Cabral
Colaborador Brasil Escola
Graduado em Filosofia pela Universidade Federal de Uberlândia - UFU
Mestrando em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP