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A equação entre História e Direito é solucionada em Kant como o fator determinante da exigência na elaboração de critérios procedimentalistas (formais) universais. Isto porque o autor faz a distinção entre moralidade e legalidade de modo a possibilitar a coexistência entre elas.
De maneira geral, o legado kantiano reside na consideração sobre os limites da Razão e a autonomia de suas faculdades. Assim, Ciência, Moral e Estética (ou conhecimento, ética e arte) possuem domínios próprios, capazes de realizar todo o potencial das faculdades humanas enquanto esferas culturais, no interior das quais podem ainda haver subdivisões.
Aquela que imediatamente interessa aqui é a Faculdade da Razão Prática em geral (Crítica da Razão Prática, Fundamentação da Metafísica dos Costumes, Antropologia do ponto de vista pragmático, etc.) em que se desenvolve a compreensão da moral. Esta é dividida em ética e direito, diferentes em razão do móbil que as determina.
Na ética, o móbil da ação é interno, ou seja, a intenção da ação é deliberada de forma autônoma, independente de outros fatores, senão que a própria vontade (querer) consciente do agente. Já no direito, este móbil pode tanto ser interno quanto externo, sendo que o que interessa para a análise não é a intenção e sim a expressão da ação, sua realização ou seu fenômeno, porque pode ser resultado de uma vontade determinada heteronomamente.
Kant estabelece que a relação entre ética e direito é uma relação de subordinação, em que as ações pautadas pela autonomia do indivíduo devem se tornar paradigmáticas em relação às ações heterônomas. Isto ocorre porque Kant entende o homem como um ser sensível (ou homem natural) e inteligível (sujeito puro da liberdade) concomitantemente, sendo o sensível o que justifica a heteronomia e o inteligível o que funda a autonomia (já que a racionalidade exige reflexão). O inteligível, pois, sendo reino dos fins e que permite aos homens pensar a partir de ideias, expressa o domínio (e a essência) de sua (dos homens) liberdade e caracteriza o dever (o ato intrínseco das escolhas e a responsabilidade sobre elas).
Dessa forma, pode-se compreender como Kant sintetizou as discussões predominantes entre os séculos XVI e XVIII sobre direito natural e direito positivo (entende-se, para Kant, direito natural como direito racional). As teorias ditas jusnaturalistas justificavam o fundamento da moral ou do direito no Cosmos ou natureza ou em Deus, enquanto as teorias juspositivistas compreendiam o direito (e consequentemente o Estado) como fruto do arbítrio humano, isto é, criado por um ato de vontade. Ora, em Kant não há uma oposição entre natureza humana e vontade ou razão. Há, sim, a oposição entre a condição do homem no estágio sem leis criadas de forma autônoma (entendido anteriormente como estado de natureza) e o estado civil em que as possibilidades de um acordo livre para a coexistência de liberdades várias é dado a priori. Logo, é importante salientar que no estado civil o homem não perdeu a sua liberdade original (como em Rousseau), nem vive em um regime mecânico de limitação recíproca (como determinam os contratualistas ingleses), mas sim que a liberdade, entendida como autonomia e fundada na Razão, tem meios de determinar o acordo (contrato) a partir de uma máxima que expressa um querer universal (e, assim, tanto na relação entre indivíduos quanto entre Estados).
Mas o como isso é feito, só a história ou a existência de seres livres (e que, portanto, criam seus próprios fins e conduzem-se até eles) pode determinar. Porque, enquanto ser finito e que pensa ou introduz no mundo um reino infinito (o inteligível, na tentativa de construir a república cosmopolita enquanto ideia), o homem esbarra nas suas limitações naturais. Portanto, ao que tudo indica, Kant parece pensar numa antropologia da existência, não como uma ciência humana descritiva (crítica à psicologia tradicional), mas como a única forma de relacionar empírico e transcendental. Essa relação explicaria a relação entre a evolução do direito e das leis, conforme a liberdade (infinita) cria as suas condições de existência, ou seja, uma análise do weltbürger, o cidadão do mundo, o homem no mundo que através da linguagem constrói para si o reino dos fins como ideal da república cosmopolita.
Por João Francisco P. Cabral
Colaborador Brasil Escola
Graduado em Filosofia pela Universidade Federal de Uberlândia - UFU
Mestrando em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP