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O anacoluto é uma figura de linguagem relacionada à sintaxe do enunciado, ou seja, à estrutura da sentença e à relação das palavras que a compõem. É uma figura de construção (ou figura de sintaxe) caracterizada pela “topicalização” de um termo no início do enunciado, o que faz com que esse termo fique desconectado dos outros elementos que o compõem.
Leia também: Metáfora – figura de linguagem que faz uma comparação implícita
Tópicos deste artigo
- 1 - Uso do anacoluto
- 2 - Exemplos de anacoluto
- 3 - Diferença entre anacoluto e hipérbato
- 4 - Exercícios resolvidos
Uso do anacoluto
O anacoluto é comumente usado na linguagem oral e coloquial, bem como em algumas prosas e poesias. Esse recurso estilístico interrompe a sequência lógica de um pensamento, destacando um termo no início do enunciado e formando uma espécie de tópico com o elemento destacado. O restante da sentença reinicia uma linha de raciocínio a respeito do elemento desconectado no início do período.
Além de destacar o elemento, o anacoluto pode transmitir a ideia de informalidade ou de improviso, característicos da linguagem oral, ao interromper e reorganizar uma ideia no meio de sua expressão.
Exemplos de anacoluto
“Na TV, os filmes que passam nela não são verossímeis.”
Nesse exemplo, o elemento “Na TV” aparece isolado no início do enunciado e perde sua função sintática quando aparece o elemento “nela”, que faz referência a “Na TV”. O elemento “nela” passa a ser o objeto indireto da oração e, “Na TV”, torna-se apenas um tópico abandonado no início do discurso.
“Uma onça pintada
E seu tiro certeiro
Deixou os meus nervos
De aço no chão”
(Alceu Valença)
No exemplo acima, extraído da canção “Como dois animais”, de Alceu Valença, a expressão “Uma onça pintada” fica desconectada do restante do enunciado, sendo, porém, o tópico dele: na construção “o seu tiro certeiro deixou os meus nervos de aço no chão”, o tiro certeiro é da onça-pintada, que foi substituída no enunciado pelo pronome “seu”.
“E a imaginação dela, como as cegonhas que um ilustre viajante viu desferirem o voo desde o Ilisso às ribas africanas, sem embargo das ruínas e dos tempos, — a imaginação dessa senhora também voou por sobre os destroços presentes até às ribas de uma África juvenil” (Machado de Assis)
Nesse trecho de Memórias Póstumas de Brás Cubas, o narrador-personagem começa o enunciado com “E a imaginação dela”, que é interrompido por uma divagação. Ao retomar, “a imaginação dessa senhora” assume o posto que seria originalmente da primeira ocorrência. Esta fica topicalizada no início do parágrafo, desconectada de qualquer enunciado, perdendo sua função sintática.
Diferença entre anacoluto e hipérbato
Assim como o anacoluto, o hipérbato é uma figura de construção bastante utilizada na língua portuguesa e tem a ver com a mudança de posição de alguns elementos do discurso. Há, no entanto, diferenças entre eles.
O hipérbato ocorre quando há um elemento destacado no meio de outro enunciado. Ele também quebra a estrutura de uma oração, porém o elemento que interrompe o discurso possui função própria, e o discurso interrompido é retomado na sequência. Assim, não há prejuízo entre os enunciados, sendo o hipérbato apenas uma realocação de ideias. Observe:
“A empresa, todos concordavam, cresceu muito com a nova chefia.”
Note que, ao contrário do anacoluto, os elementos que formam o hipérbato têm função sintática dentro de sua própria estrutura. No caso do anacoluto, os elementos ficariam sem função sintática.
Leia também: O que são figuras de sintaxe?
Exercícios resolvidos
Questão 1 – Quadrix
Mineirinho
É, suponho que é em mim, como um dos representantes de nós, que devo procurar por que está doendo a morte de um facínora. E por que é que mais me adianta contar os treze tiros que mataram Mineirinho do que os seus crimes. Perguntei a minha cozinheira o que pensava sobre o assunto. Vi no seu rosto a pequena convulsão de um conflito, o mal-estar de não entender o que se sente, o de precisar trair sensações contraditórias por não saber como harmonizá-las. Fatos irredutíveis, mas revolta irredutível também, a violenta compaixão da revolta. Sentir-se dividido na própria perplexidade diante de não poder esquecer que Mineirinho era perigoso e já matara demais; e no entanto nós o queríamos vivo. [...]
Mas há alguma coisa que, se me faz ouvir o primeiro e o segundo tiro com um alívio de segurança, no terceiro me deixa alerta, no quarto desassossegada, o quinto e o sexto me cobrem de vergonha, o sétimo e o oitavo eu ouço com o coração batendo de horror, no nono e no décimo minha boca está trêmula, no décimo primeiro digo em espanto o nome de Deus, no décimo segundo chamo meu irmão. O décimo terceiro tiro me assassina — porque eu sou o outro. Porque eu quero ser o outro. Essa justiça que vela meu sono, eu a repudio, humilhada por precisar dela. Enquanto isso durmo e falsamente me salvo. Nós, os sonsos essenciais. Para que minha casa funcione, exijo de mim como primeiro dever que eu seja sonsa, que eu não exerça a minha revolta e o meu amor, guardados. Se eu não for sonsa, minha casa estremece. [...]
Em Mineirinho se rebentou o meu modo de viver. [...] Sua assustada violência. Sua violência inocente — não nas consequências, mas em si inocente como a de um filho de quem o pai não tomou conta. Tudo o que nele foi violência é em nós furtivo, e um evita o olhar do outro para não corrermos o risco de nos entendermos. Para que a casa não estremeça. A violência rebentada em Mineirinho que só outra mão de homem, a mão da esperança, pousando sobre sua cabeça aturdida e doente, poderia aplacar e fazer com que seus olhos surpreendidos se erguessem e enfim se enchessem de lágrimas. [...]
A justiça prévia, essa não me envergonharia. Já era tempo de, com ironia ou não, sermos mais divinos; se adivinhamos o que seria a bondade de Deus é porque adivinhamos em nós a bondade, aquela que vê o homem antes de ele ser um doente do crime. Continuo, porém, esperando que Deus seja o pai, quando sei que um homem pode ser o pai de outro homem. E continuo a morar na casa fraca. Essa casa, cuja porta protetora eu tranco tão bem, essa casa não resistirá à primeira ventania que fará voar pelos ares uma porta trancada. [...] o que me sustenta é saber que sempre fabricarei um deus à imagem do que eu precisar para dormir tranquila e que outros furtivamente fingirão que estamos todos certos e que nada há a fazer. [...] Feito doidos, nós o conhecemos, a esse homem morto onde a grama de radium se incendiara. Mas só feito doidos, e não como sonsos, o conhecemos. [...]
Até que viesse uma justiça um pouco mais doida. Uma que levasse em conta que todos temos que falar por um homem que se desesperou porque neste a fala humana já falhou, ele já é tão mudo que só o bruto grito desarticulado serve de sinalização. Uma justiça prévia que se lembrasse de que nossa grande luta é a do medo, e que um homem que mata muito é porque teve muito medo. Sobretudo uma justiça que se olhasse a si própria, e que visse que nós todos, lama viva, somos escuros, e por isso nem mesmo a maldade de um homem pode ser entregue à maldade de outro homem: para que este não possa cometer livre e aprovadamente um crime de fuzilamento.
Uma justiça que não se esqueça de que nós todos somos perigosos, e que na hora em que o justiceiro mata, ele não está mais nos protegendo nem querendo eliminar um criminoso, ele está cometendo o seu crime particular, um longamente guardado. [...]
Clarice Lispector
(Disponível em ip.usp.br. Adaptado.)
Veja esta definição: "Período iniciado por uma palavra ou locução, seguida de pausa, que tem como continuação uma oração em que essa palavra ou locução não se integra diretamente, embora esteja integrada pelo sentido e, de alguma forma, retomada sintaticamente". No texto apresentado, há algumas ocorrências dessa estrutura, denominada anacoluto. Assinale a alternativa que contenha um período do texto em que isso aconteça.
a) O décimo terceiro tiro me assassina — porque eu sou o outro. Porque eu quero ser o outro.
b) Essa justiça que vela meu sono, eu a repudio, humilhada por precisar dela.
c) Tudo o que nele foi violência é em nós furtivo, e um evita o olhar do outro.
d) Se adivinhamos o que seria a bondade de Deus é porque adivinhamos em nós a bondade.
e) Uma justiça que não se esqueça de [...] que na hora em que o justiceiro mata, [...] ele está cometendo o seu crime particular.
Resolução:
Alternativa B. O elemento “Essa justiça que vela o meu sono” perde sua função sintática quando é retomado pelo pronome “a”, que passa a ser o objeto direto da oração “Eu a repudio”.
Questão 2 – PR4-UFRJ
Considere o texto a seguir:
“O país passou, sem escala, dos anacolutos de Dilma Rousseff às mesóclises de Temer. De um ponto de vista (digamos) psíquico-gramatical, a mudança faz o desfavor de sugerir que não há meio termo para o ser brasileiro: ou tropeçamos a cada passo na desestruturação lógica e sintática, tentando fazer com que palavras e coisas se encaixem a golpes de marreta, ou caímos na cafonice bacharelesca que azeita as engrenagens do discurso enquanto o afasta da fala popular e o torna marotamente difícil, concebido menos para se comunicar com cidadãos do que para mesmerizar multidões. Em algum lugar profundo de nossa mentalidade, há uma placa de bronze na qual, sob uma efígie de Rui Barbosa e com nota de rodapé informando tratar-se de tradução do latim, está gravada esta mentira: ‘Falar enrolado é sinal de uma inteligência superior’.”
Trecho decupado de Temer e a mesóclise: o homem pronominal, de Sérgio Rodrigues. 30 de maio de 2016. http://www.melhordizendo.com/ temer-e-mesoclise-o-homem-pronominal/
Marque a alternativa que define, corretamente, a figura de linguagem associada pelo autor ao modo de expressão da então presidente afastada, Dilma Rousseff.
a) Repetição de palavra(s) no início de cada frase.
b) Omissão de termos facilmente subentendidos.
c) Quebra da estruturação sintática, pela qual termos da frase ficam sem função sintática.
d) Concordância ideológica, que se faz pela ideia, e não de palavra para palavra.
e) Atenuação, abrandamento de determinadas expressões chocantes.
Resolução:
Alternativa C. O anacoluto é caracterizado por quebrar a estrutura sintática do enunciado, deixando o termo isolado em seu início sem função sintática.
Por Guilherme Viana
Professor de Gramática