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Dramaturgo, romancista, cronista, contista e... poeta. Talvez você nunca tenha ouvido falar sobre a faceta lírica de Caio Fernando Abreu, um dos mais populares e importantes escritores da Literatura brasileira, mas a verdade é que ele também possui uma obra poética, obra pouco conhecida e explorada. Consagrado por sua prosa, Caio transitou por diferentes gêneros, mas a poesia manteve cuidadosamente guardada em diários por achar que elas não possuíam valor literário.
Basta ler um único poema para perceber que o escritor, conhecido por seu perfeccionismo, estava errado. Embora sua prosa seja altamente poética, os versos escritos por Caio exprimem sua veia lírica de maneira incomparável. Assim como tudo que escreveu, os poemas do escritor que é altamente parafraseado nas redes sociais são viscerais e tratam de assuntos que permeiam toda sua obra, como o amor, a dor, a paixão, a solidão, a morte, o desejo, entre outros, sempre abordados por meio de uma linguagem transgressora e muito próxima da coloquialidade.
Os poemas permaneceram inéditos durante dezesseis anos, quando enfim foram publicados. Infelizmente, o livro Poesias nunca publicadas de Caio Fernando Abreu, que compila cento e dezesseis poemas escritos entre os anos de 1960 e 1996, ano de sua morte, está fora de catálogo, mas o Brasil Escola vai mostrar cinco poemas de Caio Fernando Abreu para você ler, curtir e compartilhar. Boa leitura!
Oriente
manda-me verbena ou benjoim no próximo crescente
e um retalho roxo de seda alucinante
e mãos de prata ainda (se puderes)
e se puderes mais, manda violetas
(margaridas talvez, caso quiseres
manda-me Osíris no próximo crescente
e um olho escancarado de loucura
(um pentagrama, asas transparentes)
manda-me tudo pelo vento;
envolto em nuvens, selado com estrelas
tingindo de arco-íris, molhado de infinito
(lacrado de oriente, se encontraste)
Pour la route
(Bordeaux, março de 1993)
Quem sabe o Mozart si loin,
maybe a tarde entre os loureiros,
peut-être le coucher du soleil?
Chamam nomes na memória:
ah inverno que não acaba nunca
ah vontade de chorar sem dor.
Pelo tempo, pelas perdas,
pelas coisas, pelas gentes,
que passam e passeiam pelas notas do piano,
janelas de TGV, hotéis, insônias,
gares, mochilas, cabines.
Tudo outra vez, entre a bruma
desta última tarde em Bordeaux.
Caio Fernando Abreu no bairro de Santa Teresa, Rio de Janeiro. Imagem cedida por Márcia de Abreu Jacintho
Stone song
(Porto Alegre, 1996)
Eu gosto de olhar as pedras
que nunca saem dali.
Não desejam nem almejam
ser jamais o que não são.
O ser das pedras que vejo
é só ser, completamente.
Eu quero ser como as pedras
que nunca saem dali.
Mesmo que a pedra não voe,
quem saberá de seus sonhos?
Os sonhos não são desejos,
os sonhos sabem ser sonhos.
Eu quero ser como as pedras
e nunca sair daqui.
Sempre estar, completamente,
onde estiver o meu ser.
Vem navegar na minha vida
Vem navegar na minha vida
Faça de conta que meu corpo é um rio,
Faça de conta que os meus olhos são a correnteza,
Faça de conta que meus braços são peixes
Faça de conta que você é um barco
E que a natureza do barco é navegar.
E então navegue, sem pensar,
Sem temer as cachoeiras da minha mente,
Sem temer as correntezas, as profundidades.
Me farei água clara e leve.
Para que você me corte lenta, segura,
Até mergulharmos juntos no mar
Que é nosso porto.
Faz anos navego o incerto
Faz anos navego o incerto.
Não há roteiros nem portos.
Os mares são de enganos
e o prévio medo dos rochedos
nos prende em falsas calmarias.
As ilhas no horizonte, miragens verdes.
Eu não queria nada além
de olhar estrelas
como quem nada sabe
para trocar palavras, quem sabe um toque
com o surdo camarote ao lado
mas tenho medo do navio fantasma
perdido em pontas sobre o tombadilho
dou a face e forma a vultos embaçados.
A lua cheia diminui a cada dia.
Não há respostas.
Queria só um amigo onde pudesse jogar o coração
como uma âncora.
Por Luana Castro
Graduada em Letras