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Carlos Drummond de Andrade está no seleto grupo de escritores geniais. Não bastasse ter oferecido para os leitores o que há de melhor na poesia brasileira do século XX, Drummond também ofereceu para o público seus contos — o lado contista talvez seja a faceta menos conhecida do escritor — e crônicas, gênero que ajudou a consagrá-lo como nome indispensável para a literatura brasileira.
Drummond deixou uma vasta obra literária, objeto de estudo e de admiração passados quase trinta anos de sua morte. Ao passo em que desenhava sua obra, colaborava com diversos jornais, entre eles o Jornal do Brasil, publicação carioca com a qual contribuiu durante quinze anos. A parceria teve início em 1969 e, até o ano de 1984, Carlos Drummond de Andrade escreveu três vezes por semana para o Caderno B, suplemento cultural do Jornal do Brasil. Foram publicadas, aproximadamente, 2.300 crônicas, cujos temas eram sempre relacionados com a vida cotidiana, como o futebol, a música, a memória individual e a memória coletiva. Nos textos de Drummond é possível identificar elementos comuns à poesia, vide o lirismo que o poeta sempre emprestava a esse gênero que caminha nas fronteiras que separam jornalismo e literatura.
“Eu fui mais um cronista, um amigo e companheiro da hora do café da manhã que um escritor. Um homem que registrava o cotidiano e o comentava com o possível bom-humor para não aumentar a tristeza e a inquietação das pessoas. Considerava o jornal um repositório de notícias tremendas. Então, o meu cantinho do jornal era aquele cantinho em que procurava distrair as pessoas dos males, dos aborrecimentos, das angústias da vida cotidiana.”
Em 29 de setembro de 1984, quando o poeta já contava com 81 anos de idade, publicou seu derradeiro texto nas páginas do Caderno B do Jornal do Brasil. À crônica deu o sugestivo nome de Ciao e nela se despedia definitivamente dos leitores, seus companheiros de café da manhã. Assim como todas as outras e a despeito do tempo, matéria-prima de uma crônica, Ciao possui um inestimável valor literário e histórico, afinal de contas, era Drummond, considerado o maior poeta brasileiro do século XX, em seu último ato como cronista.
O Brasil Escola tem o prazer de mostrar para você, caro leitor, a última crônica de Carlos Drummond de Andrade, Ciao. Esperamos que faça boa leitura, assim como esperamos também que esse seja o convite para que você conheça um pouco mais da prosa e da poesia desse grande escritor.
Ciao foi publicada no dia 29 de setembro de 1984, no Caderno B do Jornal do Brasil. Era a despedida de Drummond do gênero crônica
Ciao
Há 64 anos, um adolescente fascinado por papel impresso notou que, no andar térreo do prédio onde morava, um placar exibia a cada manhã a primeira página de um jornal modestíssimo, porém jornal. Não teve dúvida. Entrou e ofereceu os seus serviços ao diretor, que era, sozinho, todo o pessoal da redação. O homem olhou-o, cético, e perguntou:
- Sobre o que pretende escrever?
- Sobre tudo. Cinema, literatura, vida urbana, moral, coisas deste mundo e de qualquer outro possível.
O diretor, ao perceber que alguém, mesmo inepto, se dispunha a fazer o jornal para ele, praticamente de graça, topou. Nasceu aí, na velha Belo Horizonte dos anos 20, um cronista que ainda hoje, com a graça de Deus e com ou sem assunto, comete as suas croniquices.
Comete é tempo errado de verbo. Melhor dizer: cometia. Pois chegou o momento deste contumaz rabiscador de letras pendurar as chuteiras (que na prática jamais calçou) e dizer aos leitores um ciao-adeus sem melancolia, mas oportuno.
Creio que ele pode gabar-se de possuir um título não disputado por ninguém: o de mais velho cronista brasileiro. Assistiu, sentado e escrevendo, ao desfile de 11 presidentes da República, mais ou menos eleitos (sendo um bisado), sem contar as altas patentes militares que se atribuíram esse título. Viu de longe, mas de coração arfante, a Segunda Guerra Mundial, acompanhou a industrialização do Brasil, os movimentos populares frustrados mas renascidos, os ismos de vanguarda que ambicionavam reformular para sempre o conceito universal de poesia; anotou as catástrofes, a Lua visitada, as mulheres lutando a braço para serem entendidas pelos homens; as pequenas alegrias do cotidiano, abertas a qualquer um, que são certamente as melhores.
Viu tudo isso, ora sorrindo ora zangado, pois a zanga tem seu lugar mesmo nos temperamentos mais aguados. Procurou extrair de cada coisa não uma lição, mas um traço que comovesse ou distraísse o leitor, fazendo-o sorrir, se não do acontecimento, pelo menos do próprio cronista, que às vezes se torna cronista do seu umbigo, ironizando-se a si mesmo antes que outros o façam.
Crônica tem essa vantagem: não obriga ao paletó-e-gravata do editorialista, forçado a definir uma posição correta diante dos grandes problemas; não exige de quem a faz o nervosismo saltitante do repórter, responsável pela apuração do fato na hora mesma em que ele acontece; dispensa a especialização suada em economia, finanças, política nacional e internacional, esporte, religião e o mais que imaginar se possa. Sei bem que existem o cronista político, o esportivo, o religioso, o econômico etc., mas a crônica de que estou falando é aquela que não precisa entender de nada ao falar de tudo. Não se exige do cronista geral a informação ou comentários precisos que cobramos dos outros. O que lhe pedimos é uma espécie de loucura mansa, que desenvolva determinado ponto de vista não ortodoxo e não trivial e desperte em nós a inclinação para o jogo da fantasia, o absurdo e a vadiação de espírito. Claro que ele deve ser um cara confiável, ainda na divagação. Não se compreende, ou não compreendo, cronista faccioso, que sirva a interesse pessoal ou de grupo, porque a crônica é território livre da imaginação, empenhada em circular entre os acontecimentos do dia, sem procurar influir neles. Fazer mais do que isso seria pretensão descabida de sua parte. Ele sabe que seu prazo de atuação é limitado: minutos no café da manhã ou à espera do coletivo.
Com esse espírito, a tarefa do croniqueiro estreado no tempo de Epitácio Pessoa (algum de vocês já teria nascido nos anos a.C. de 1920? duvido) não foi penosa e valeu-lhe algumas doçuras. Uma delas ter aliviado a amargura de mãe que perdera a filha jovem. Em compensação alguns anônimos e inominados o desancaram, como a lhe dizerem: “É para você não ficar metido a besta, julgando que seus comentários passarão à História”. Ele sabe que não passarão. E daí? Melhor aceitar as louvações e esquecer as descalçadeiras.
Foi o que esse outrora-rapaz fez ou tentou fazer em mais de seis décadas. Em certo período, consagrou mais tempo a tarefas burocráticas do que ao jornalismo, porém jamais deixou de ser homem de jornal, leitor implacável de jornais, interessado em seguir não apenas o desdobrar das notícias como as diferentes maneiras de apresentá-las ao público. Uma página bem diagramada causava-lhe prazer estético; a charge, a foto, a reportagem, a legenda bem feitas, o estilo particular de cada diário ou revista eram para ele (e são) motivos de alegria profissional. A duas grandes casas do jornalismo brasileiro ele se orgulha de ter pertencido ― o extinto Correio da Manhã, de valente memória, e o Jornal do Brasil, por seu conceito humanístico da função da Imprensa no mundo. Quinze anos de atividade no primeiro e mais 15, atuais, no segundo, alimentarão as melhores lembranças do velho jornalista.
E é por admitir esta noção de velho, consciente e alegremente, que ele hoje se despede da crônica, sem se despedir do gosto de manejar a palavra escrita, sob outras modalidades, pois escrever é sua doença vital, já agora sem periodicidade e com suave preguiça. Ceda espaço aos mais novos e vá cultivar o seu jardim, pelo menos imaginário.
Aos leitores, gratidão, essa palavra-tudo.
(Jornal do Brasil, 29/09/1984)
Por Luana Castro
Graduada em Letras