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Selecionar apenas cinco entre tantos belíssimos poemas não é tarefa fácil, sobretudo quando se trata da obra de Carlos Drummond de Andrade, considerado o maior poeta brasileiro do século XX. Certamente o poeta recusaria o epíteto, mas é inquestionável que o ilustre cidadão itabirano é um dos escritores mais queridos e visitados da nossa Literatura brasileira.
Cinco poemas que nem sempre estão entre os mais lembrados e, na tentativa de desfazer a injustiça que esconde do grande público versos menos parafraseados, resgatamos para você poemas que não cabem na superficialidade das inúmeras coletâneas publicadas na internet. Para nós, e agora para você, o essencial de Carlos Drummond de Andrade. Boa leitura!
O poeta deixou livros inéditos, publicados postumamente pela Editora Record: O avesso das coisas, Moça deitada na grama, O amor natural e Farewell **
Comunhão
Todos os meus mortos estavam de pé, em círculo
eu no centro.
Nenhum tinha rosto. Eram reconhecíveis
pela expressão corporal e pelo que diziam
no silêncio de suas roupas além da moda
e de tecidos; roupas não anunciadas
nem vendidas.
Nenhum tinha rosto. O que diziam
escusava resposta,
ficava, parado, suspenso no salão, objeto
denso, tranquilo.
Notei um lugar vazio na roda.
Lentamente fui ocupá-lo.
Surgiram todos os rostos, iluminados.
Consolo na praia
Vamos, não chores.
A infância está perdida.
A mocidade está perdida.
Mas a vida não se perdeu.
O primeiro amor passou.
O segundo amor passou.
O terceiro amor passou.
Mas o coração continua.
Perdeste o melhor amigo.
Não tentaste qualquer viagem.
Não possuis carro, navio, terra.
Mas tens um cão.
Algumas palavras duras,
em voz mansa, te golpearam.
Nunca, nunca cicatrizam.
Mas, e o humor?
A injustiça não se resolve.
À sombra do mundo errado
murmuraste um protesto tímido.
Mas virão outros.
Tudo somado, devias
precipitar-te, de vez, nas águas.
Estás nu na areia, no vento…
Dorme, meu filho.
Carlos Drummond de Andrade: Duas mãos e o sentimento do mundo ***
Ausência
Por muito tempo achei que a ausência é falta.
E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência.
A ausência é um estar em mim.
E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,
que rio e danço e invento exclamações alegres,
porque a ausência, essa ausência assimilada,
ninguém a rouba mais de mim.
A hora do cansaço
As coisas que amamos,
as pessoas que amamos
são eternas até certo ponto.
Duram o infinito variável
no limite de nosso poder
de respirar a eternidade.
Pensá-las é pensar que não acabam nunca,
dar-lhes moldura de granito.
De outra matéria se tornam, absoluta,
numa outra (maior) realidade.
Começam a esmaecer quando nos cansamos,
e todos nos cansamos, por um ou outro itinerário,
de aspirar a resina do eterno.
Já não pretendemos que sejam imperecíveis.
Restituímos cada ser e coisa à condição precária,
rebaixamos o amor ao estado de utilidade.
Do sonho de eterno fica esse gozo acre
na boca ou na mente, sei lá, talvez no ar.
Para sempre
Por que Deus permite
que as mães vão-se embora?
Mãe não tem limite,
é tempo sem hora,
luz que não apaga
quando sopra o vento
e chuva desaba,
veludo escondido
na pele enrugada,
água pura, ar puro,
puro pensamento.
Morrer acontece
com o que é breve e passa
sem deixar vestígio.
Mãe, na sua graça,
é eternidade.
Por que Deus se lembra
- mistério profundo -
de tirá-la um dia?
Fosse eu Rei do Mundo,
baixava uma lei:
Mãe não morre nunca,
mãe ficará sempre
junto de seu filho
e ele, velho embora,
será pequenino
feito grão de milho.
Carlos Drummond de Andrade
*A imagem que ilustra esse artigo é capa do disco Antologia Poética, Polygram/Philips, 1978.
**A imagem que ilustra o miolo do artigo foi feita a partir de capas de livro de Carlos Drummond de Andrade publicados pela Editora Record.
***A imagem que ilustra o miolo do artigo é capa do livro Mestres da Literatura: Carlos Drummond de Andrade, da escritora Antonieta Cunha, Editora Moderna.
***Créditos da imagem: Shutterstock e Georgios Kollidas
Por Luana Castro
Graduada em Letras