De maneira geral, os enunciados podem ser considerados como sendo acontecimentos discursivos, isto é, são as unidades de comunicação/interação entre os sujeitos.
Para que posamos refletir a respeito do enunciado, é preciso, primeiramente, discutirmos a respeito da Linguística da Enunciação, área da filosofia da linguagem que trata do estudo dos enunciados, dos discursos e suas condições de produção. Essa área de estudos da linguagem ganhou destaque com a publicação da obra Marxismo e Filosofia da Linguagem (1929), quando Mikhail Bakhtin lançou as bases de um novo arcabouço teórico-metodológico para análise dos fenômenos de linguagem, cujo objeto é a enunciação, isto é, a interação verbal.
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O que diz Bakhtin sobre o Enunciado?
Em seus trabalhos, Bakhtin suscita a relevância de se considerar o trabalho com a linguagem a partir das condições reais de uso, e não a partir da classificação e da análise de categorias fixas e classificatórias das palavras e do funcionamento das línguas. Isso porque, para o filósofo russo, todo enunciado tem caráter fundamentalmente dialógico, ou seja, os enunciados geram efeitos de sentido que só podem ser analisados no contexto de enunciação e estão sempre relacionados a outros enunciados anteriores e àqueles que ainda estão por vir.
Para que possamos compreender o que postula Bakhtin, leia o seguinte enunciado:
Adorei a manga.
Para que possamos compreender os efeitos de sentido produzidos por esse enunciado, é preciso considerarmos as suas condições de produção. Isso significa que, para que possamos compreender o sentido desse enunciado, não basta analisá-lo morfológica ou sintaticamente, mas, sim, em quais condições ele foi produzido. Sem a análise das condições de produção do enunciado, não podemos saber se o substantivo 'manga' refere-se a uma fruta ou a uma parte de uma blusa. Essas condições de produção seriam, por exemplo, os fatores externos que compõem os enunciados: se o sujeito fala apontando ou segurando a fruta, se aponta para a blusa do interlocutor, se está na feira comprando frutas, se está em uma loja olhando roupas etc.
Com relação ao caráter fundamentalmente dialógico do enunciado, conforme aponta Bakhtin, podemos dizer que esse enunciado não foi proferido pela primeira vez pelo enunciador. Foi preciso que outros enunciados tivessem surgido anteriormente para que tanto o enunciador quanto seu interlocutor compreendessem o significado das palavras “adorei a manga” (o que é adorar, o que é uma manga).
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Da mesma forma que outros enunciados anteriores são necessários para que possamos compreender os efeitos de sentido, todo enunciado também está relacionado com outros que ainda estão por vir, já que os enunciados requerem uma resposta, uma atitude responsiva ativa de seu interlocutor durante a interação entre os sujeitos.
É no enunciado que se encontram as mais variadas formas de expressividade linguística, estando essas formas de expressão em estado de incompletude ou inacabamento, prontas para responder aos enunciados já proferidos ou àqueles que ainda serão realizados, isto é, estão em função das formas das enunciações, realizadas nos momentos de interação.
Para analisarmos um enunciado, é preciso observá-lo a partir de sua relação dialógica, ou seja, como cada enunciado é um elo na corrente de outros enunciados. Essa corrente só pode ser vista na sua atuação e materialização linguística, a exemplo dos textos verbais, orais ou escritos. Isso significa que encontramos nos textos (verbais ou não) um exemplo de enunciado concreto. O enunciado e o texto são compreendidos como sendo um só fenômeno concreto, como unidades de intercâmbio verbal.
Língua e enunciado
Para Bakhtin, os sujeitos colocam-se no mundo na e pelas linguagens, verbais e/ou não, e concebem a língua como sendo um fenômeno social que se manifesta na interação verbal. É justamente por esse motivo que ele considera necessário observarmos, além da estrutura dos enunciados, os aspectos extralinguísticos que os constituem, ou seja, as condições de produção. Os referidos aspectos são indispensáveis para a produção de sentidos, a qual está sintonizada à realidade do evento interacional. Assim, a concretização da palavra ocorre no fluxo da interação verbal, sendo (re)significada a partir do contexto no qual emerge, no momento de enunciação.
Oração e palavra
Bakhtin, em sua obra Marxismo e Filosofia da Linguagem (1929), procurou delimitar as fronteiras que distinguem o enunciado dos termos oração e palavra. A oração é considerada como uma unidade da língua de construção e análise passivas, pois, enquanto unidade, não relativiza o outro (o interlocutor do discurso) e a especificidade do contexto. A palavra é definida como fenômeno ou signo ideológico por excelência, produto de trocas sociais, em um dado contexto, que determina as condições de vida de uma dada comunidade linguística (religião, político-partidária, instituições de trabalho etc.).
Por Ma. Luciana Kuchenbecker Araújo