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É fato incontestável que a vinda da Família Real Portuguesa para o Brasil, na virada de 1807 para 1808, marcou a história do país, haja vista que nossa nação deixou de ser colônia de Portugal para tornar-se, junto ao país ibérico e a Algarves, um Reino Unido. Entretanto, geralmente os conteúdos escolares sobre esse período concentram-se nas transformações políticas conduzidas por Dom João VI no Brasil e não se detêm em outros pontos, como: de que modo as relações íntimas da família real poderiam interferir no destino político tanto do Brasil quanto de Portugal?
Dom Pedro I, o responsável direto por nossa Independência, era fruto do casal real D. João VI e D. Carlota Joaquina. O primeiro, herdeiro da dinastia dos Bragança de Portugal e filho da rainha Maria I, a Louca. A segunda, membro da dinastia dos Bourbon, da Espanha, e filha do rei Carlos IV. A união das duas casas por meio do matrimônio dos dois foi selada em 1765, quando o noivo tinha 18 anos, e a noiva, apenas 10. O casamento consumou-se apenas cinco anos depois e, como aponta o historiador Otávio Tarquínio de Sousa, em sua biografia de Dom Pedro I, o par “estava fadado ao desencontro, ao desentendimento, à luta ora furtiva e desleal, ora franca e declarada. Em quase nada se pareciam esse português e essa espanhola. Ambos fisicamente feios, ambos sem nenhuma qualidade moral superior, ambos dissimulados, é certo.” [1].
O destino infeliz do casal parecia estar traçado desde a combinação física, o que, entre os historiadores, tem rendido narrativas bem cômicas, como são as do mesmo Otávio Tarquínio de Sousa, tanto sobre o rei quanto sobre a rainha, como pode ser visto abaixo:
“[…] Dom João carecia de qualquer dos atributos ou características que podem fazer um homem prezado ou admirado por mulheres, sobretudo do feitio da que lhe coube. Nada de beleza viril, coragem, decisão, ousadia, capacidade de mando. O Bragança, filho de sobrinha com tio, era desajeitado, grosso, balofo, barrigudo, moleirão, sem hábito de asseio para não dizer sujo, descuidado no vestuário, e medroso, acanhado, perplexo, sonso, apurando em manha o que minguava em autoridade, disfarçando em paciência a congênita irresolução.” [2]
Já de Carlota diz Sousa:
[…] A Bourbon, que as negociações diplomáticas e os arranjos de dinastias lhe deram [a Dom João VI] como parceira, era quase horrenda, ossuda, com uma espádua acentuadamente mais alta do que a outra, com uns olhos miúdos, uma pele grossa que as marcas de bexiga ainda faziam mais ásperas, um nariz avermelhado. E pequena, por um triz anã, claudicante. Nesse corpo mirrado uma alma ardente, ambiciosa, inquieta, sulcada de paixões, uma natureza exigente, com os impulsos do sexo alvoraçados, isenta de escrúpulos, afirmativa quando possível, mansa por cálculo, tenaz, ávida de mando, corajosa, capaz de arrostar a adversidade. [3]
Como se pode perceber, a relação entre Carlota Joaquina e Dom João VI foi uma das mais controversas e marcadas por tensões da história de Portugal. Ardilosa e politicamente ambiciosa – haja vista que, além de rainha de Portugal, também era uma possível regente ou mesmo rainha da Espanha –, D. Carlota desde muito cedo começou a tecer intrigas contra as malhas de poder do marido em favor próprio, inicialmente, e, depois, em favor de seu filho caçula, D. Miguel, incitando este a dar um Golpe de Estado contra o próprio pai em meados da década de 1820. De sua parte, D. João procurava esquivar-se também por meio de ardis contra as investidas da esposa, articulando toda sorte de negociações políticas, tanto internas quanto externas a Portugal.
Quando estavam no Brasil, D. João procurava combater estrategicamente as manobras napoleônicas, atacando pontos como a Guiana Francesa, na fronteira com a então província do Grão-Pará. Por outro lado, D. Carlota, ao saber do rompimento de laços políticos entre Napoleão e seu pai, Carlos IV, e da prisão de seu irmão e herdeiro do trono espanhol, pôs-se logo a investir, com a ajuda do almirante britânico Sidney Smith (que muitos julgam ter sido seu amante), na aprovação de sua pessoa, diante das colônias espanholas na América, como rainha do trono espanhol – projeto que não deu certo.
Essas e muitas peripécias do casal real português dão-nos a dimensão de como detalhes particulares podem afetar grandemente o andamento da história como um todo.
NOTAS
[1] SOUSA, Otávio Tarquínio de. “A vida de D. Pedro I” (tomo 1º). In: História dos fundadores do Império do Brasil (vol. II). Brasília: Senado Federal/Conselho Editorial, 2015. p. 17.
[2] Idem. p. 17-18
[3] Ibidem. p. 18.
Por Me. Cláudio Fernandes