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Certa vez, ouvi um deputado afirmar: “O aborto deve ser legalizado porque já é praticado”. À primeira vista, pensamento verdadeiro; à segunda, uma falácia. Falácia é um pensamento falso: não é porque algo é praticado que pode ser legalizado. Fosse assim, a corrupção também poderia ser legalizada. Eis aí um exemplo do embate entre senso comum e filosofia.
Digamos que o senso comum fala a língua do deputado aí do exemplo, ao passo que a filosofia faz a análise lógica do discurso, procurando, nele, aquilo que contraria as regras básicas do pensar correto. A lógica qualifica o raciocínio são.
A filosofia, metódica e sistemática, é feita de raciocínios logicamente qualificados. Ela busca aquele sentido que possa ordenar o caos (desordem e vazio) e transformá-lo em cosmos (ordem e harmonia), fazendo com que representações, significações e compreensões conceituais da realidade fujam do absurdo e expressem a razoabilidade teórica e prática à condução da existência.
O senso comum pode ser entendido como o saber da vida o qual vamos adquirindo espontaneamente, à medida que vamos vivendo. Ele pode ter erros tanto quanto a ciência, a filosofia, as artes, o mito, a tecnologia e a teologia, pois, igual a essas outras formas de conhecimento, ele é um produto humano, falível, passível de equívocos e enganos, impropriedades e incorreções.
Dessa maneira, se o saber comum leva uma pessoa a afirmar que “porque é antigo é bom”, o filósofo dirá que antiguidade não é sinônimo de bondade. Se o senso comum afirma que o dito de um americano não tem valor, o filósofo responderá que esse é um argumento contra o homem e que isso não basta para desqualificar discursos. Lembra quando alguns diziam que não votariam em certo político porque ele era analfabeto?
De igual modo, não é porque nunca “provaram o contrário” que algo é verdadeiro (o fato de a infinitude do universo não ter sido provada não garante que o universo é finito). E não é porque um pensamento é atribuído a uma autoridade que esse pensamento é, apenas por isso, certo, verdadeiro e seguro.
Na esteira desse pensar errôneo, que a lógica corrige, está a afirmação de que se uma pessoa matou alguém ela tem de ir para a cadeia. Ora, não é sempre que o assassínio leva à prisão, caso da legítima defesa, por exemplo. Contrário a isso é o pensamento que vai do singular rumo a uma lei geral, a tal da generalização apressada: “O marido de x trai, logo todos os homens traem”.
É possível perceber a diferença entre o tal senso comum e a filosofia? O saber filosófico não aceita apressadamente conclusões tiradas após “exame de superfície” das coisas, fenômenos, acontecimentos, pessoas e relações. A filosofia busca a razão de ser de tudo pela raiz, o significado básico de tudo. O senso comum se contenta com afirmações do tipo que assegura que “manga com leite faz mal”.
O que faz mal é a não alfabetização em filosofia. Ela submete o saber da vida ao crivo da razão crítica, fazendo-nos ir além do espontaneísmo, que não dá conta de causas e consequencias, e do subjetivismo, que não explica os porquês do nosso dia a dia.
É por essas e outras que precisamos de filosofia.
Por Wilson Correia*
Colunista Brasil Escola
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*Wilson Correia é doutor em Educação pela UNICAMP, filósofo, psicopedagogo e professor na Universidade Federal do Tocantins, Campo Universitário de Arraias, e autor do livro “TCC não é um bicho-de-sete-cabeças” (Rio de Janeiro: Ciência Moderna, 2009). Endereço eletrônico: wilsoncorreia@uft.edu.br.