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O Dia Mundial da Filosofia é o momento propício para se compreender, com Merlau-Ponty, que “a verdadeira filosofia é reaprender a ver o mundo”.
O Dia Mundial da Filosofia foi instituído pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). Todos os anos ele é comemorado na terceira quinta-feira do mês de novembro. Neste ano de 2007, os eventos alusivos à data acontecem neste 15 de novembro, dia durante o qual se discutirá, entre outras coisas, sobre para que serve a filosofia.
Quero entender que essa data reforça a idéia de que a filosofia não está morta. Se ela for mortal, falecerá no dia em que o último ser humano for banido da face da Terra. Por que? Porque a filosofia tem como essência de sua razão de ser a capacidade humana de usar a própria complexidade cognitiva para representar o mundo e a vida concreta nele inserida.
Não há como impedir que o homem e a mulher pensem sobre a vida, representem o existente, analisem os pensamentos já manifestos historicamente ou critiquem as representações que resultam em visões dos mais diferentes matizes. Interditar o pensamento é interditar o humano.
Não fosse isso, os filósofos não estariam preocupados em mostrar que a filosofia possa ser um instrumento a mais a auxiliar o ser humano nessa tarefa de pensar, representar, julgar, decidir e agir com a criticidade que lhe é inerente. Nesse sentido, a filosofia tem muito por fazer na atualidade.
A utilidade e a importância da atitude filosófica podem residir nos atos de avaliar os diversos dogmatismos que assombram o mundo e que são impermeáveis ao diálogo, bem como as operações ideológicas dos seres humanos que manipulam o real, os fanatismos que cegam e as ações destrutivas ao redor do planeta que colocam em risco de extinção todas as manifestações da vida. Esses temas dão um alentado programa de ação para a filosofia, os quais podem ser resumidos em apenas um: fazer ver.
Por que ver? Porque a filosofia é atitude. Ela não é só discurso. Não é mera contemplação. Nem puro ócio. Como disse Sêneca nas Cartas a Lucílio, “A filosofia ensina a agir, não a falar”. Mas, compreendendo que o falar é uma forma de ação humana, um modo de se dizer o que se vê, sou da opinião de que o que Jostein Gaarder, filósofo norueguês, escreveu para a Unesco, por ocasião da comemoração deste Dia Mundial da Filosofia, é digno de nota.
Segundo Gaarder, pensando na Declaração Universal dos Direitos Humanos, feita pela Organização das Nações Unidas (ONU), talvez seja tempo de pensarmos em uma Declaração Universal dos Deveres Humanos, tal como Kant teria sugerido quando pensou em um imperativo universal para estabelecer a união planetária entre os povos.
Faço notar essa idéia que Gaarder busca em Kant porque não tenho certeza se imperativos são suficientes para que a ação humana no mundo seja mais bem orientada. Entretanto, estou certo de que os organismos internacionais e os filósofos mundializados recorrem a Kant e ao imperativo universal quando querem fazer eco à idéia de tolerância. Está lá, em todos os textos da Unesco.
Sim, em um mundo globalizado, a urgência de se saber conviver com as diferenças e a premência em se praticar o respeito e a convivialidade civilizada são valores humanos universais que poderiam consubstanciar aquela declaração de deveres, pois esses são valores importantes e ninguém nega. O problema recorrente, não apenas nessas ocasiões, é que sempre querem que sejamos tolerantes com coisas intoleráveis. Ora, isso é difícil de aceitar. Certas tolerâncias que querem nos fazer praticar são intoleráveis.
Por exemplo, os dados do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) sobre as faces da pobreza no mundo dá a dimensão da irracionalidade humana no que se refere à (in)justiça social e mostram os obstáculos para que haja uma união planetária de nações como querem os kantianos.
Esses dados falam por si mesmos. Bem mais de um bilhão de seres humanos no mundo sobrevivem com menos de um dólar por dia. Dois bilhões e setecentos milhões de homens e mulheres contam com menos de dois dólares para se manterem entre uma noite e outra.
Na esteira dessa miséria, seis milhões de crianças morrem atacadas por doenças facilmente curáveis, tais como diarréia, malária e pneumonia. Há regiões do globo nas quais menos da metade das crianças vão à escola no ensino fundamental. Menos de vinte por cento delas chegam ao ensino médio. 114 milhões de crianças não recebem nenhuma educação escolar. 584 milhões delas estão metidas no analfabetismo.
Pergunto: é possível ser tolerante com aqueles e com as estruturas que alimentam essa máquina de sobrevida e de morte? É com base nesse tipo de estrutura que uma declaração de deveres deseja delinear a união entre os povos?
Ora, o texto do PNUD me garante que, todos os dias, 800 milhões de pessoas adormecem com fome, sendo 300 milhões delas crianças... eu devo tolerar esse atentado contra a vida? Isso é desigualdade, não é diferença. A diferença foi feita para ser respeitada e vivida. A desigualdade e a injustiça nós não podemos tolerar.
Não é possível ser complacente quando esse relatório me diz que, a cada três minutos e seis segundo, uma pessoa morre de fome ao redor da Terra. É possível ser tolerante diante desse holocausto?
Esse estado macabro de coisas leva à política, campo em que assisto ao acinte, à desfaçatez e à subestimação de nossa inteligência: quando os políticos se colocam acima da lei e da ética, quase sempre para perpetuarem estruturas que geram vida para poucos e morte para muitos... com essa política eu devo ser tolerante?
Quando “ser” não é poder, quando “saber” não é poder, mas quando “ter” é que é poder efetivo, inclusive engolindo e moldando a prática política, também diante disso eu devo adotar a postura omissa de quem tolera?
Devo ser tolerante com esse modelo econômico injusto e com esse regime político obtuso, os quais nivelam a cultura pelo que de mais grotesco pode existir nesse setor? Tenho de aceitar essa cultura de massas feita pela quantidade, e não pelo mínimo daquilo que se considera qualidade e bom?
Se o Dia Mundial da Filosofia foi instituído para fazer com que a consciência humana aprofunde a própria criticidade em relação a si mesma, aos julgamentos de que tem participado em nossa época e às ações que as pessoas temos realizado no mundo, então devo indagar: o que é dignidade humana? A economia, a política e a cultura atuais estão a serviço dessa dignidade ou de quê?
Continuando, pergunto: o que vale termos uma declaração de direitos? Se uma declaração de direitos não nos acrescentou humanismo, uma declaração de deveres resolverá os nossos desatinos? Será possível fazer com que, por meio de deveres, todos os povos do mundo se unam em torno de valores humanos que lhes traga a paz e a concórdia? Tenho lá minhas dúvidas.
Enquanto a economia for empregada na produção de desigualdades, enquanto o uso do poder for feito para sacramentar privilégios e desrespeitar valores e enquanto a cultura for utilizada para embrutecer e cegar, penso que a tarefa da filosofia se agiganta.
Na situação em que no vemos, o máximo filosófico a ser feito é fazer as pessoas que amam a sabedoria voltar os olhos de infante ao real que nos circunda e gritar, alto e bom som, igual ao personagem infantil do dinamarquês Hans Christian Andersen: “o rei está nu”. Essa é a tarefa hercúlea da filosofia.
E tomara que o rei não fuja, nem tente matar o menino, nem diga que o garoto está louco. Tomara, ainda, que os acólitos do rei façam o mesmo: aceitem o grito revelador. Desejo, e muito, que o rei possa assumir a própria nudez e tratar de se vestir, o mais rapidamente possível. A vida não pode agonizar sob nossos olhos que não querem enxergar. Sem enxergar, como dar o passo, como empreender a ação?
Sim, o rei precisa ver. Até para escolher a roupa que vestirá após descobrir-se em pêlos. De minha parte, tenho uma sugestão de vestimenta: humanidade. Essa seria uma roupa que lhe cairia bem, sobretudo para que compreendesse para que serve o saber filosófico neste Dia Mundial da Filosofia.
Por Wilson Correia
Colunista Brasil Escola