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Gregório de Matos

Apelidado de Boca do Inferno, Gregório de Matos foi um poeta brasileiro famoso por seus versos satíricos que atentavam contra a sociedade colonial baiana do século XVII.

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Gregório de Matos foi um dos mais conhecidos poetas da literatura feita durante o século XVII, período da cultura colonial brasileira. É também a grande expressão do movimento barroco no Brasil e o patrono da cadeira número 16 da Academia Brasileira de Letras.

Muitos de seus versos são ácidos, satíricos e refletem uma postura crítica à administração colonial – excessivamente localista e burocrática –, à fidalguia brasileira, ao clero moralista e corrupto e a quem mais compusesse a degradada sociedade colonial, o que lhe rendeu o apelido de Boca do Inferno.

Leia também: Barroco no Brasil – as particularidades da ocorrência desse movimento em solo brasileiro

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Biografia

Filho de dois fidalgos portugueses, Gregório de Matos e Guerra nasceu em 20 de dezembro de 1636 em Salvador (BA), então capital da colônia. Estudou Humanidades no Colégio dos Jesuítas e depois partiu para Coimbra, onde se formou pela Faculdade de Direito e escreveu lá sua tese de doutoramento, toda em latim.

Retrato do poeta Gregório de Matos feito no século XIX por F. Briguiet. [1]
Retrato do poeta Gregório de Matos feito no século XIX por F. Briguiet. [1]

Ainda em Portugal, exerceu os cargos de juiz criminal e curador de órfãos, mas, mal-adaptado com a vida na metrópole, regressou ao Brasil em 1683. Já na Bahia, o primeiro arcebispo D. Gaspar Barata concedeu-lhe os cargos de vigário-geral (uma ocupação vinculada ao Tribunal Episcopal, responsável por inquirir delitos e pela administração da Justiça) e de tesoureiro-mor. Contudo, sua recusa em completar as ordens eclesiásticas o impediu de permanecer nas funções.

Apaixonou-se pela viúva Maria de Povos, com quem viveu primeiramente na bonança e até cair na miséria. Foi considerado, em sua época, um homem infame, mas um excelente poeta. Caiu na boemia, amargurado, debochando e satirizando de tudo e de todos, especialmente dos que tinham poder, a quem incomodou tanto a ponto de ser deportado para Angola em 1685 e ser proibido de voltar ao Brasil até 1694. Fixiu-se em Recife (PE), em 1696, onde acabou falecendo, em 26 de novembro do mesmo ano.

Leia também: Brasil Colônia, período da história em que viveu Gregório de Matos

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Características literárias

A obra de Gregório de Matos possui duas vertentes: a satírica, composta dos versos de escárnio pelos quais ficou conhecido e que lhe renderam a alcunha de Boca do Inferno, e a lírico-amorosa, cujos poemas dividem-se entre temas sacros e do amor sensual. O poeta reverbera em sua obra características literárias do barroco, como a moralização da vida terrena, o caráter contrarreformista, o dualismo e a angústia humana.

Gregório de Matos escreveu sonetos, quadras, sextilhas e poemas em formas diversas, sempre rimados e geralmente seguindo o esquema métrico regular, vigente no período (e que facilitava a memorização). É nos sonetos que se encontra sobretudo a influência barroca de sua obra, com silogismos, uso abundante de figuras de linguagem, jogos de palavras e oposições (sagrado-profano, amor-pecado, sublime-grotesco etc.).

Obras

Segundo o professor e pesquisador João Adolfo Hansen, um dos principais especialistas na literatura da época colonial brasileira, não se conhece nenhum manuscrito de próprio punho feito por Gregório de Matos. Todos os seus textos, à semelhança de outros poetas que lhe eram contemporâneos, foram reunidos em compilações feitas por seus admiradores, de modo que o próprio autor nada editou em vida.

Nos Seiscentos, a circulação de livros era escassa e muitas vezes proibida ou censurada, e poucos eram os cidadãos letrados no Brasil. Os poemas de Gregório de Matos eram, via de regra, escritos em panfletos, que circulavam pela cidade de Salvador. Esses panfletos eram reunidos por alguns colecionadores e depois costurados em um tipo de documento conhecido como códice. Já os versos satíricos eram comumente colados (com cola de farinha de mandioca) nas portas das igrejas e quem sabia ler os declamava – de fácil memorização, serviam para inspirar novos poemas.

Fac-símile do ano de 1775 onde se vê a página de abertura do compilado de poemas atribuídos a Gregório de Matos feito por Manuel Pereira Rebelo.
Fac-símile do ano de 1775 onde se vê a página de abertura do compilado de poemas atribuídos a Gregório de Matos feito por Manuel Pereira Rebelo.

São mais de 700 os textos atribuídos a Gregório de Matos, mas não há como haver certeza comprovada de sua autoria. É do início do século XVIII a publicação de uma primeira compilação de seus versos, intitulada A Vida do Excelente Poeta Lírico, o Doutor Gregório de Matos e Guerra, feita pelo baiano Manuel Pereira Rabelo. Essa reunião de poemas ficou, contudo, esquecida até 1841, quando o cônego Januário da Cunha Barbosa, membro do recém-fundado Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, publicou dois poemas cômicos dessa compilação.

O chamado Códice Rabelo é provavelmente a principal fonte para a publicação de Poemas escolhidos, obra publicada em 2010 com seleção, prefácio e notas do professor José Miguel Wisnik. Também merece destaque a Coleção Gregório de Matos, organizada por João Adolfo Hansen e Marcello Moreira, composta de cinco volumes reunindo a poesia atribuída ao autor a partir do Códice Asensio-Cunha.

Leia também: Arcadismo – movimento literário posterior ao barroco

Temas abordados e poemas

São três os principais temas abordados por Gregório de Matos: a poesia amorosa, a poesia religiosa e a poesia satírica.

Poesia lírico-amorosa

O amor é abordado por Gregório de Matos frequentemente a partir da dualidade carne/espírito, na qual o amor carnal representa a tentação fugaz da paixão sexual, entendida como pecaminosa pelo catolicismo, semeando um sentimento de culpa e uma angustiosa percepção da instabilidade e inconstância da matéria – tudo se acaba, o corpo se deteriora, a existência humana é finita. A beleza da figura feminina é muitas vezes associada a elementos da natureza.

No poema abaixo, intitulado “A D. Ângela”, podemos perceber com clareza essas características: a evocação da beleza feminina em comparação com a flor, elemento da natureza, em jogo de palavras com o nome da moça, que, por sua vez, remete à presença divina da figura angelical. No entanto, a conclusão do poeta, “sois Anjo que me tenta, e não me guarda”, relembra que a beleza, embora tenha traços divinos, angélicos, é fruto da tentação da carne.

A D. Ângela

Anjo no nome, Angélica na cara,
Isso é ser flor, e Anjo juntamente,
Ser Angélica flor, e Anjo florente,
Em quem, senão em vós se uniformara?

Quem veria uma flor, que a não cortara
De verde pé, de rama florescente?
E quem um Anjo vira tão luzente,
Que por seu Deus, o não idolatrara?

Se como Anjo sois dos meus altares,
Fôreis o meu custódio, e minha guarda,
Livrara eu de diabólicos azares.

Mas vejo, que tão bela, e tão galharda,
Posto que os Anjos nunca dão pesares,
Sois Anjo, que me tenta, e não me guarda.

São vários também os poemas lírico-amorosos embasados em uma postura reflexiva e meditativa do poeta, escrevendo em jogos de sentidos à luz do dualismo característico do período barroco: vida e morte, ferocidade e compaixão.

Vagava o poeta por aqueles retiros filosofando em sua desdita sem poder desapegar as harpias de seu justo sentimento

Quem viu mal como o meu sem meio ativo!
Pois no que me sustenta, e me maltrata,
É fero, quando a morte me dilata,
Quando a vida me tira, é compassivo.

Oh do meu padecer alto motivo!
Mas oh do meu martírio pena ingrata!
Uma vez inconstante, pois me mata,
Muitas vezes cruel, pois me tem vivo.

Já não há de remédio confianças;
Que a morte a destruir não tem alentos,
Quando a vida empenar não tem mudanças.

E quer meu mal dobrando os meus tormentos,
Que esteja morto para as esperanças,
E que ande vivo para os sentimentos.

Poesia religiosa

O tema católico está presente em vários versos de Gregório de Matos, sempre imbuído de um espírito contrarreformista também muito característico do barroco. Apoia-se nos traços do movimento: dualidade matéria/espírito, inconstância (e perigos) da vida terrena, percepção angustiosa da mortalidade e da pequenez humana perante a grandeza divina, salvação/pecado, submissão à Igreja, contrição e arrependimento dos pecados.

Podemos perceber essas características no poema abaixo, “No dia de quarta-feira de cinzas”, no qual o poeta evoca um dia específico do calendário católico romano para a exposição de suas ideias, glorificando a grandiosidade divina e seu poder (representação do perene, do espiritual, do eterno) perante a efêmera existência humana (mortal, não duradoura e inconstante), condenando as vilanias e pecados dos homens. O baixel, pequena embarcação, é utilizado como figura de linguagem para representar os perigos e tentações da vida humana, refém dos “mares da vaidade”, em oposição à terra firme da fé católica, representando a solidez da salvação divina.

No dia de quarta-feira de cinzas

Que és terra, homem, e em terra hás de tornar-te,
Te lembra hoje Deus por sua Igreja;
De pó te faz espelho, em que se veja
A vil matéria, de que quis formar-te.

Lembra-te Deus que és pó para humilhar-te,
E como o teu baixel sempre fraqueja
Nos mares da vaidade, onde peleja,
Te põe à vista a terra, onde salvar-te.

Alerta, alerta, pois, que o vento berra.
Se assopra a vaidade e incha o pano,
Na proa a terra tens, amaina e ferra.

Todo o lenho mortal, baixel humana,
Se busca a salvação, tome hoje terra,
Que a terra de hoje é porto soberano.

Poesia satírica

É por essa categoria de poemas que Gregório de Matos é mais conhecido e aclamado no cânone literário nacional. Crítico mordaz da sociedade colonial, ninguém escapou aos seus escárnios: fidalgos brasileiros que se orgulhavam de seu sangue português (mas eram mestiços), clérigos defensores da moral e dos bons costumes (mas eram corruptos, libidinosos, folgados e pecaminosos), autoridades que abusavam do poder (colonial e centralizado), até mesmo negros, mestiços e cidadãos comuns. Com seu vocabulário incisivo e composições de rimas burlescas, os poemas satíricos ironizavam e debochavam de tudo e todos, denunciando os vícios da colônia.

Veja alguns trechos dos 100 versos do poema “Embarcado já o poeta para o seu degredo, e postos os olhos na sua ingrata pátria lhe canta desde o mar as despedidas”, escrito, como diz o título, quando da expulsão de Gregório de Matos do Brasil. Nele o poeta atenta contra toda a capital baiana e a formação de uma colônia sem escrúpulos; contra os senhores de engenho; contra os portugueses e os brasileiros – esses últimos, burros de carga a sustentar Portugal –; contra a nobreza colonial orgulhosa de uma pureza racial que não possui, hipócrita e bajuladora, e que vive de ser também bajulada.

Embarcado já o poeta para o seu degredo, e postos os olhos na sua ingrata pátria lhe canta desde o mar as despedidas

Adeus, praia, adeus, Cidade,

e agora me deverás,

Velhaca, dar eu adeus,

a quem devo ao demo dar.

Que agora, que me devas

dar-te adeus, como quem cai,

sendo que estás tão caída,

que nem Deus te quererá.

Adeus Povo, adeus Bahia,

digo, Canalha infernal,

[...]

Vá visitar os amigos

no engenho de cada qual,

e comendo-os por um pé,

nunca tire o pé de lá.

Que os Brasileiros são bestas,

e estarão a trabalhar

toda a vida por manter

maganos de Portugal.

[...]

No Brasil a fidalguia

no bom sangue nunca está,

nem no bom procedimento,

pois logo em que pode estar?

Consiste em muito dinheiro,

e consiste em o guardar,

cada um o guarde bem,

para ter que gastar mal.

Consiste em dá-lo a maganos,

que o saibam lisonjear,

dizendo, que é descendente

da casa do Vila Real.

[...]

Podemos perceber que a condenação ao degredo em Angola provém de uma série de versos contra os governantes e cidadãos baianos, como nos trechos apresentados a seguir do poema “Torna a definir o poeta os maus modos de obrar na governança da Bahia [...]”, nos quais faz uma lista dos males sociais que contaminavam a colônia e sua capital, Salvador. Ninguém escapa: dos governantes aos escravocratas, passando pelos negros, pelo sistema judiciário falho, o clero corrompido e ambicioso, comparando a Bahia a um corpo adoecido e agonizante, dada a coletânea de males de que padece.

Torna a definir o poeta os maus modos de obrar na governança da Bahia, principalmente naquela universal fome, que padecia a cidade

Que falta nesta cidade?........................................................................Verdade
Que mais por sua desonra.................................................................... Honra
Falta mais que se lhe ponha................................................................. Vergonha.

O demo a viver se exponha,
por mais que a fama exalta,
numa cidade, onde falta
Verdade, Honra, Vergonha.

Quem a pôs nesse socrócio? .................................................................. Negócio
Que causa tal perdição? ......................................................................... Ambição
E o maior desta loucura? ........................................................................ Usura.

Notável desaventura
de um povo néscio, e sandeu,
que não sabe, que o perdeu,
Negócio, Ambição, Usura.

Quais são os seus objetos? ........................................................................ Pretos
Tem outros bens mais maciços? ................................................................ Mestiços
Quais destes lhes são mais gratos? ............................................................ Mulatos.

Dou ao demo os insensatos,
dou ao demo a gente asnal,
que estima por cabedal
Pretos, Mestiços, Mulatos.

[...]

E que a justiça resguarda? ........................................................................ Bastarda
É grátis distribuída? .................................................................................. Vendida
Que tem, que a todos assusta? ................................................................... Injusta.

Valha-nos Deus, o que custa,
o que El-Rei nos dá de graça,
que anda a justiça na praça
Bastarda, Vendida, Injusta.

Que vai pela clerezia? ................................................................................ Simonia
E pelos membros da Igreja? ........................................................................ Inveja
Cuidei, que mais se lhe punha? .................................................................... Unha.

Sazonada caramunha”
enfim que na Santa Sé
o que se pratica, é
Simonia, Inveja, Unha.

[...]

O açúcar já se acabou? ................................................................................ Baixou
E o dinheiro se extinguiu? ............................................................................ Subiu
Logo já convalesceu? .................................................................................... Morreu.

À Bahia aconteceu
o que a um doente acontece,
cai na cama, o mal lhe cresce,
Baixou, Subiu e Morreu.

 

Por Luiza Brandino
Professora de Literatura

Escritor do artigo
Escrito por: Luiza Brandino Escritor oficial Brasil Escola

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BRANDINO, Luiza. "Gregório de Matos"; Brasil Escola. Disponível em: https://brasilescola.uol.com.br/literatura/gregorio-matos-guerra.htm. Acesso em 25 de abril de 2024.

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